Pensata

Salvador Nogueira

10/11/2005

O ataque dos venusianos ultravioletas

A maioria dos cientistas prefere nem mencionar essa hipótese --muito especulativa. Mas para mim uma das coisas mais interessantes que a sonda européia Venus Express, despachada ontem para o espaço, irá investigar é a possibilidade de que haja formas de vida em Vênus.

Eu mencionei isso na cozinha de casa anteontem e todo mundo olhou para mim com uma cara de absoluta descrença. "Vida em Vênus?! Como assim?!" (Eu moro com um grupo de Ph.D.s em astrobiologia, você não sabia?) "Pois é, vida em Vênus", eu respondi.

ESA
Foguete Soyuz-Fregat leva a sonda Venus Express ao espaço
Foguete Soyuz-Fregat leva a sonda Venus Express ao espaço
Tudo bem, dou a mão à palmatória: é realmente difícil imaginar vida num mundo com temperatura ambiente de causticantes 450 graus Celsius e pressão atmosférica equivalente a noventa vezes a da Terra (imagine mergulhar um quilômetro de profundidade num oceano terrestre --não é trabalho para aquele seu reloginho digital Casio velho de guerra). Sejamos francos, nenhuma forma de vida conhecida agüentaria viver nessas condições.

Esse foi exatamente o quadro que por várias décadas, desde o envio das primeiras sondas espaciais, nos anos 1960, desanimou os cientistas que estão à procura de criaturas alienígenas (para não falar do pessoal lá de casa). O desalento fez todos os olhos se voltarem para Marte, que por sua vez é hoje visto quase como um paraíso para a vida, se comparado à superfície de Vênus. (Vale lembrar que já descobrimos um ou dois micróbios terrestres que se dariam muito bem em terras marcianas, sem reclamar.)

No entanto, alguns cientistas mais arrojados começam agora a atentar para o fato de que na verdade todas as nossas expectativas de encontrar vida pelo Universo afora se baseiam no conhecimento que temos da biologia terrestre. Talvez a vida seja capaz de adaptações que nem podemos imaginar. Como diria Carl Sagan, é um belo caso em que a melhor postura é manter a mente aberta.

Nasa
Imagem mostra detalhes da superfície venusiana, vistos pela sonda Magellan
Imagem mostra detalhes da superfície venusiana, vistos pela sonda Magellan
E, dependendo do ângulo pelo qual se olha, Vênus nem é tão inóspito assim. É que temos essa visão enviesada pela vida na Terra, em que o que conta principalmente são as condições na superfície. Mas o que dizer da alta atmosfera venusiana? A alguns quilômetros de altitude, podemos encontrar uma pressão equivalente à encarada ao nível do mar na Terra, com temperaturas relativamente amenas, na faixa entre 30 e 80 graus --o que equivale a um alvará para a presença de água líquida. Poderia existir vida nas nuvens de Vênus, alheia ao que acontece no inferno escaldante logo abaixo? Ninguém sabe. Faltam dados.

É aí que entra a Venus Express, a primeira sonda enviada àquele mundo em mais de uma década. Com um pacote de instrumentos sofisticados, ela voltará a atenção para a atmosfera venusiana. Entre suas prioridades está coletar dados sobre um fenômeno que há muito intriga os cientistas planetários: existe na alta atmosfera de Vênus alguma... coisa... que absorve a luz ultravioleta vinda do Sol. Ninguém tem a menor idéia do que pode ser.

Antes de escrever a reportagem sobre o lançamento da Venus Express para a Folha, tive a oportunidade de trocar umas figurinhas com David Grinspoon, cientista planetário do Southwest Research Institute, em Boulder, Colorado, nos Estados Unidos. Ele tem um carinho especial por Vênus, depois de ter participado da missão Magellan, da Nasa, última espaçonave a visitar o planeta. E o que mais lhe atrai na nova missão européia é justamente coletar mais dados sobre esse fenômeno.

"Tem essa misteriosa substância nas alturas das nuvens conhecida como o 'absorvente desconhecido de ultravioleta'. Não sabemos o que é, mas ele absorve uma enorme quantidade da energia solar que chega a Vênus", ele me disse. "É possível que as observações espectrais da Venus Express ajudem a solucionar esse mistério."

Acontece que Grinspoon e Dirk Schulze-Makuch, da Universidade do Texas em El Paso, são defensores da tese de que essa absorção de ultravioleta possa ser a assinatura de formas de vida que aprenderam a fazer fotossíntese com esses raios mais energéticos provenientes do Sol. Na Terra, as plantas realizam esse processo, que consiste em transformar luz e gás carbônico em energia, com luz visível. Mas será que bactérias venusianas não poderiam ter se adaptado para viver de ultravioleta? Gás carbônico é o que não falta na atmosfera venusiana; é justamente a presença maciça dessa substância no ar que o torna uma estufa fervente e inóspita.

Alternativamente, os venusianos podem ter apenas aprendido a sobreviver ao ultravioleta, usando de alguma maneira certos átomos de enxofre especializados em absorver essa radiação para se proteger contra ela.

ESA
Concepção artística da sonda estudando nuvens venusianas
Concepção artística da sonda estudando nuvens venusianas
Claro, ainda é, como eu disse no início, uma idéia altamente especulativa. Como poderiam esses bichinhos venusianos sobreviver a um ambiente extremamente agressivo, em meio a nuvens de ácido sulfúrico? Schulze-Makuch gosta de lembrar que alguns extremófilos terrestres também vivem felizes da vida em fontes ácidas.

A Venus Express poderá começar a jogar luz sobre essas intrigantes possibilidades. Mas certamente não terminará o serviço. Grinspoon antecipa que será preciso fazer mais para considerar aquele mundo suficientemente bem explorado. "Em várias áreas importantes, como composição e variabilidade atmosférica, ela nos dará as melhores observações já feitas e irá nos ajudar a resolver o quebra-cabeça que é Vênus. Mas eu também acho que há uma forte necessidade de missões mais ambiciosas para explorar a atmosfera e a superfície."

Ou seja, mesmo em se tratando do planeta vizinho mais próximo da Terra, ainda há muito que fazer.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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