Pensata

Salvador Nogueira

22/12/2005

O devorador de naves espaciais

Depois de se acostumar a uma temporada de dois anos em Marte a bordo dos jipes robóticos Spirit e Opportunity, pode até parecer que não, mas Marte sem dúvida é um devorador de naves espaciais.

Ao longo da história da exploração espacial, dezenas de sondas não-tripuladas foram enviadas ao planeta vermelho, sobretudo por russos e americanos, mas também por japoneses e europeus. As missões costumam se dividir em dois tipos básicos: num deles, a espaçonave precisa apenas voar por sobre o planeta (geralmente estabelecendo-se em órbita marciana); no outro, o artefato é projetado para adentrar a atmosfera e realizar um pouso no solo.

MSSS/Beagle-2
Destaque realça possível localização da Beagle-2
Destaque realça possível localização da Beagle-2
Não é difícil imaginar que a segunda modalidade é a mais complicada. Os russos, na época da União Soviética, tentaram quatro vezes aterrissar uma sonda em Marte. Na melhor, a máquina desceu e transmitiu 20 segundos de dados (insuficientes para enviar mesmo uma imagem) e então pifou. Nas demais, após a entrada na atmosfera marciana ninguém nunca mais ouvir falar das espaçonaves. Pura ironia, os soviéticos jamais conseguiram conquistar o planeta vermelho.

Os maiores sucessos tiveram de vir mesmo dos americanos. Já nos anos 1970, as primeiras tentativas de pouso ianques, com as sondas Viking-1 e 2, foram um estrondoso sucesso. Depois delas, o pouso seguinte veio só em 1997, com a Mars Pathfinder e seu jipezinho Sojourner. Mas a alegria americana acabaria por aí. Em 1999, a Mars Polar Lander, que deveria descer sobre o gélido pólo Sul marciano, fracassa em estabelecer contato com a Terra após o suposto pouso.

A tentativa seguinte de pousar em Marte foi a primeira conduzida pelos europeus, sob a liderança do Reino Unido. Era a Beagle-2, destinada a procurar vida no planeta vermelho. (O nome é inspirado pela embarcação que, no século 19, levou Charles Darwin aos mais remotos cantos do globo para coletar os dados que o motivariam a desenvolver a teoria da evolução pela seleção natural.) A sonda foi perdida após a entrada na atmosfera marciana, em pleno Natal de 2003.

Para fechar a conta, as duas últimas tentativas da Nasa de pousar em Marte, com os jipes Spirit e Opportunity, redundaram em sucesso, no início de 2004.

Contabilizando, das 13 sondas já enviadas por humanos ao solo marciano, apenas 5 sobreviveram para contar a história --menos da metade. Marte é um devorador de naves espaciais. E o grande mistério deixado para trás é: o que aconteceu para que essas espaçonaves fracassassem em sua missão? Em muitos casos, a resposta é desconhecida. Mas existe, já há algum tempo, um esforço na tentativa de decifrar o enigma. Como? Tentando obter, com as naves que sobraram em órbita, imagens das fracassadas espatifadas no chão lá embaixo.

Atualmente, a sonda capaz de obter imagens de mais alta resolução da superfície marciana é a velha-de-guerra Mars Global Surveyor, da Nasa. Espremendo e torcendo ao máximo a capacidade da espaçonave, os cientistas liderados por Michael Malin, da MSSS (empresa que produziu a câmera), já obtiveram imagens de "candidatas" a destroços da Mars Polar Lander e da Beagle-2.

No caso da sonda perdida americana, imagens posteriores refutaram a hipótese em outubro último --a sonda segue desaparecida. Quanto à espaçonave anglo-européia, nesta semana mesmo o britânico Colin Pillinger (líder do projeto da Beagle-2) anunciou a descoberta do local de pouso de sua sonda, com base em imagens da Global Surveyor processadas pelo britânicos com técnicas especiais.

Beagle-2
Ilustração de airbags que ajudariam sonda no pouso
Ilustração de airbags que ajudariam sonda no pouso
De acordo com Pillinger e seus asseclas, a Beagle-2 fracassou por pousar, por puro azar, na encosta de uma pequena cratera marciana. Apoiada por airbags, a sonda teria pipocado até ir parar no fundo da cratera. O processo, mais violento do que teria sido num sítio plano, danificou a espaçonave e impediu o contato com a Terra.

Com essa explicação, o cientista britânico reforça a idéia de que foi o azar --não o orçamento e o cronograma apertados do projeto, somados à falta de redundância nos sistemas da sonda-- o verdadeiro culpado pelo fracasso. A mim parece pouco crível.

É verdade que o azar pode ter um papel importante em tentativas de pouso em outros mundos --as incertezas são muito grandes. Por outro lado, o projeto Beagle-2 tinha problemas demais para dar certo. E mesmo essa suposta descoberta de Pillinger com as imagens da Global Surveyor não parece ser a última palavra a ser dada sobre o assunto; vale lembrar que, um ano atrás, a MSSS havia listado essa mesma cratera como a possível "sepultura" da sonda anglo-européia, para depois excluir essa hipótese, com base em análises mais aprofundadas das imagens. Ou seja, os donos da câmera já refutaram a afirmação feita agora por Pillinger. Quem tem razão? Provavelmente nenhum dos dois.

A principal lição a ser tirada é simples: por melhor que seja, a Mars Global Surveyor não é suficientemente poderosa para revelar esses mistérios sem deixar dúvidas, a despeito do sucesso na localização dos sítios de pouso dos jipes Spirit e Opportunity.

Felizmente, a solução já está --literalmente-- a caminho. Lançada em agosto, a sonda americana Mars Reconnaissance Orbiter neste momento realiza a travessia interplanetária na direção do planeta vermelho. Trata-se praticamente de um satélite-espião marciano, com resolução e capacidade muito superiores às de suas antecessoras. A chegada está marcada já para o ano que vem (uma viagem padrão até Marte consome em média oito meses), e com ela os mistérios que cercam a Polar Lander e a Beagle-2 devem ser finalmente respondidos. A não ser que Marte resolva mais uma vez exercer seu papel de devorador de naves espaciais.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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