Pensata

Salvador Nogueira

05/01/2006

No último segundo

"O Dia em que a Terra Parou" ainda é só um filme de ficção científica dos anos 1950 (dos bons, diga-se de passagem). Mas não podemos negar que a velocidade de rotação do nosso planeta está mesmo paulatinamente diminuindo. Daí o fato de 2005 ter tido um segundo a mais que os anos anteriores, adicionado às 22h do dia 31 de dezembro, ou 0h de 1º de janeiro, pelo meridiano de Greenwich. (Espero que você não seja uma daquelas pessoas que faz questão de abrir o champanhe exatamente à meia-noite...)

A adição de um segundo a mais no último dia do ano, evento que ocorre de maneira irregular desde 1972, é determinado pela Iers (sigla para Serviço Internacional de Rotação da Terra e Sistemas de Referência) a cada semestre. Desde então, já foram adicionados 22 segundos extra à contagem do tempo --a maioria em 31 de dezembro, mas alguns em 30 de junho.

A melhor forma de pensar nisso é imaginar que o segundo extra faz para "ressincronizar" o nosso horário com relação à rotação da Terra a mesma coisa que um dia a mais a cada quatro anos faz para corrigir o período da translação. Um ano, como sabemos, dura 365 dias e seis horas (isso, aproximadamente). Em vez de adicionar seis horas a cada ano (o que certamente causaria uma enorme confusão), espera-se até que a diferença permita a adição de um dia inteiro --voilà, um 29 de fevereiro a cada quatro anos coloca o calendário de volta aos eixos cósmicos.

O segundo extra faz a mesma coisa, mas para acertar a rotação. Trata-se de um problema um pouco mais complicado que o do ano bissexto, resolvido no século 16. Por exemplo, o critério para decidir dar a um dado ano um segundo a mais é um negócio meio de lua.

Sério. É por conta da Lua que a Terra está diminuindo seu ritmo de rotação. Agradeça à gravidade e ao efeito de marés.

William Hartmann
Ilustração do impacto gigante que formou a Lua
Ilustração do impacto gigante que formou a Lua
Para entender, façamos uma viagem pelo tempo, com destino ao passado. Passado longínquo, coisa de 4,6 bilhões de anos atrás. O Sistema Solar ainda está se formando, e nos céus sobre nosso mundo vemos pedregulhos voando para todo lado, se chocando e se aglutinando para formar os planetas. A Terra já está quase pronta, mas o ambiente ao seu redor ainda é turbulento, com impactos constantes de asteróides. Ei, abaixe-se! Lá vem um embrião de planeta, mais ou menos do tamanho de Marte, na direção da Terra.

Hmm, escolhamos um ponto de vista mais tranqüilo, no espaço, pois este planeta-embrião de fato se chocou com a Terra. Imagine o tamanho de uma catástrofe como a colisão de dois planetas. Os detritos produzidos foram arremessados para o espaço e finalmente se reuniram numa órbita ao redor da Terra, para formar a Lua. Se essa teoria, que é a mais aceita hoje em dia, for verdadeira, não é errado dizer que a Lua é filha da Terra com este protoplaneta desaparecido. (Talvez o "DNA" dele, ou seja, sua composição básica, ainda possa ser estudado nas rochas lunares, permitindo que desvendemos os segredos desse parente perdido de nosso satélite natural.)

William Hartmann
Simulação de cinco horas após o impacto
Simulação de cinco horas após o impacto
De volta à superfície da Terra, olhando para o céu na direção de sua nova companheira. A Lua recém-formada parece bem diferente da que estamos acostumados a ver. Sobretudo porque parecia bem maior! Originalmente, ela estava a apenas 18 mil quilômetros da superfície terrestre, cerca de 4% de sua distância atual (384 mil quilômetros). Em razão da interação gravitacional com a Terra, ela foi paulatinamente se afastando, ao mesmo tempo em que sua velocidade de rotação diminuía. Hoje, um "dia" lunar dura cerca de 28 dias terrestres, mais ou menos o mesmo tempo que a Lua leva para dar uma volta em torno da Terra, de forma que o satélite mostra sempre a mesma face para nós (dando origem à expressão "lado afastado da Lua", ou, como diriam os analfabetos científicos da banda britânica Pink Floyd, o "lado escuro da Lua".) Até hoje o satélite natural continua se afastando de nós, cerca de 3,8 centímetros a cada ano.

William Hartmann
A Lua começa a se formar perto da Terra, em ilustração
A Lua começa a se formar perto da Terra, em ilustração
Claro, essa interação gravitacional também teve seu efeito na Terra --logo depois do surgimento da Lua, o planeta girava em torno de seu próprio eixo com muito mais velocidade, completando um dia a cada 14 horas, mais ou menos. E o processo, cada vez mais cadenciado, segue em andamento, até os dias de hoje. O sistema só vai se acomodar quando mãe e filha, Terra e Lua, tiverem exatamente a mesma rotação, de forma que a mesma face da Terra esteja sempre voltada para a mesma face da Lua. Os cientistas dizem que isso só vai acontecer em vários bilhões de anos, quando ambas terão uma rotação com período equivalente ao de cerca de 47 dias atuais.

Até lá, tem muito chão pela frente. A Terra adiciona em média 1,5 milésimo de segundo em seu dia a cada século. Parece pouca coisa, mas pense de novo: é 1,5 milésimo de segundo a cada dia! Em um ano, o acumulado é de 1,5 x 365: 547,5 milésimos de segundo, ou quase meio segundo. Claro, esse 1,5 é uma média, daí a variação de ano para ano.

Sempre que essa diferença acumulada ao longo dos anos começa a chegar perto de um segundo inteiro, o Iers adiciona um segundo extra e acerta as coisas --temporariamente. Antes de 2005, o último segundo extra havia sido adicionado em 1998. (Foi o maior intervalo entre dois segundos extra, desde a implementação do sistema, em 1972.)

Existe hoje em discussão uma proposta para a abolição do sistema, simplesmente deixando que o horário oficial perca o sincronismo com o "horário cósmico". Mas, como a confusão dos calendários antes da implementação do sistema de anos bissextos demonstra, essa não parece ser a decisão mais sábia a longo prazo. Uma vez que o ano humano e o da Terra começam a não bater sem os anos bissextos, as estações também começam a cair nas datas erradas. Sem os segundos extra, veríamos a mesma coisa acontecer com o dia --num ritmo muito menor, é verdade, mas nem por isso imensurável.

Ainda assim, a discussão segue acalorada, sem resoluções. De fato, não há pressa. Questões como essa só fazem por reforçar a velha convicção de que o tempo é o senhor da razão.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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