Pensata

Salvador Nogueira

02/02/2006

Um mundo de estrelas solitárias

Já é senso comum nos círculos astronômicos dizer que estrelas em geral nascem aos pares, ou até aos trios, e que sóis solitários como o nosso são mais raros que sistemas binários. Mas um cientista acaba de constatar que isso é apenas um viés de observação --nas peneiradas mais antigas, várias estrelas estavam escapando pelos buracos da peneira, de tão pequenas que eram.

O novo estudo foi conduzido por Charles Lada, do Centro Harvard-Smithsonian para Astrofísica, nos Estados Unidos, e deve sair no periódico especializado "Astrophysical Journal Letters". Ele não traz muito mais do que bom senso à astronomia, juntando dois conceitos já razoavelmente pesquisados. O primeiro, e mais conhecido, em teoria e prática, é o de que estrelas menores existem em maior número do que as maiores.

ESO
Ilustração de planeta rochoso gelado perto de anã vermelha
Ilustração de planeta rochoso gelado perto de anã vermelha
Já o segundo é mais recente e vem de estudos que analisam quão comuns são sistemas de múltiplas estrelas quando uma delas é um astro de pequeno porte. O menor tipo de estrela normal que pode existir (por "normal" entenda-se capaz de fazer fusão nuclear e produzir energia como o Sol faz) é chamado de anã vermelha. Censos estelares recentes combinados no artigo de Lada mostram que apenas 25% das anãs vermelhas são realmente parte de um sistema múltiplo.

Juntando as duas coisas, chega-se à conclusão: cerca de dois terços de todas as estrelas na Via Láctea são solitárias.

Ora, mas se era algo tão óbvio, por que os astrônomos tinham tão clara essa noção que agora se revelou equivocada, de que os sistemas binários e múltiplos seriam prevalentes? Pobrezinhos, eles foram enganados durante décadas por um viés observacional.

Acompanhe comigo: até muito recentemente, objetos menores eram muito difíceis de se ver. Os astrônomos olhavam para todo lado, enxergando estrelas do tamanho do Sol ou maiores. A maioria delas pertencia a um sistema binário. Voilà: as duplas e trios estão em maior número!

A conclusão de Lada corrige uma velha noção de senso comum, mas não muda rigorosamente nada em termos da motivação que trouxe esse questionamento. A verdadeira pergunta que se esconde por trás disso tudo é: o nosso Sol realmente é incomum?

Para isso, a resposta continua sendo a mesma. Sim, estrelas como o Sol normalmente vêm em pares, de forma que a configuração de nosso astro-rei continua sendo razoavelmente rara.

Por outro lado, a variedade do zoólogico cósmico está nos ajudando aos poucos a respeitar a diversidade e perder essa obsessão com o modelo solar. Até agora, os dois planetas do tipo terrestre descobertos ao redor de outras estrelas (um muito quente para abrigar vida, o outro frio demais) vieram para acompanhar, adivinhe só, anãs vermelhas.

Então, um mundo cheio de anãs vermelhas solitárias é uma boa notícia para a vida no Universo, até onde podemos concluir. Talvez descubramos que nosso caso terrestre nem seja o mais favorável à vida, dentre todas as possibilidades ofertadas por um cosmos tão variado quanto podemos imaginar --ou talvez ainda mais.

O mais interessante de tudo isso, na verdade, é o que ainda não sabemos. E, ao mesmo tempo, o comichão de saber que as respostas estão lá fora.

P.S.: Agradeço a todos os e-mails solidários nas últimas semanas, perguntando sobre a ausência do Mensageiro Sideral. Por motivos de saúde, tive de me ausentar nas últimas três semanas --mas estou certo de que vocês usaram esse tempo para ler o meu livro e matar a saudade. ;-)
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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