Pensata

Salvador Nogueira

09/02/2006

Fantasmas de um passado soviético

Esta não vai ser uma coluna como as outras. Ontem, fui visitar o Centro Yuri Gagarin de Treinamento de Cosmonautas, popularmente conhecido como Cidade das Estrelas. Ou popularmente desconhecido, melhor dizendo, porque fazer o táxi nos levar até lá, saído de Moscou, foi uma dureza. Como se pode imaginar, poucos são os que falam a língua dos ianques por aqui, embora a invasão das Coca-Colas e dos McDonald`s já tenha acontecido há praticamente uma década e meia, com a queda da União Soviética.

Eu tampouco domino a língua de Dostoievski; tudo que eu sabia era que "Cidade das Estrelas" era "Zvodzni Gorodok" e olhe lá; em inglês, "Star City". Depois de evitar ser levado para "Sport City" pelo taxista, fomos parar na cidade de Korolev, vizinha de Moscou. Apesar da pronúncia terrível ("Caraliov", com o perdão da palavra), parecia ser um bom agouro: Sergei Korolev foi o grande projetista de foguetes e espaçonaves da União Soviética.

Pois bem. Tudo que havia por lá era o Centro de Controle da Missão, de onde os russos operam a ISS (Estação Espacial Internacional), mas nem sinal da Cidade das Estrelas, onde são treinados os cosmonautas. Pelo menos ali alguém, depois de algum esforço sobre-humano de comunicação translingüística, soube explicar ao meu amigo taxista como chegar ao bendito centro de treinamento, uma base militar que não aparece usualmente nos mapas, seguindo a velha tradição soviética de não sobrecarregar os camaradas proletários com informações de pouca (mais-)valia para suas vidinhas.

Tuca Vieira/FI
Marcos Pontes está em treinamento em Moscou
Marcos Pontes está em treinamento em Moscou
Antes de chegar ao destino, no entanto, seria necessário negociar o preço da corrida. Sim, os taxistas aqui negociam o preço antes da viagem, poupando assim o gasto desnecessário com coisas como taxímetros. O critério para o custo do transporte também é bastante razoável: quanto mais desesperado você está para chegar, mais caro fica. Funciona. Para os taxistas, pelo menos.

Discutir preço também se torna mais difícil quando a alternativa é ficar exposto a um frio de modestos menos vinte graus Celsius, sem nenhum outro táxi à vista, atrasado para uma entrevista coletiva. Como argumento definitivo de por que eu deveria concordar, o motorista repetia, em seu limitado inglês, muitas e muitas vezes:

- You... [Você] Caraliov!
- You... Caraliov!

Pois é. Eu, Caraliov. Dá-lhe 4.000 rublos (pouco mais de R$ 300) para o rapaz me levar à Cidade das Estrelas. E então mais de uma hora de tensão, com trânsito forte pela estrada, para chegar ao tal lugar, com medo de mais uma vez encontrar algum Caraliov pelo caminho e se perder de vez.

Felizmente, deu para chegar em tempo à entrevista coletiva e acompanhar a sabatina aos membros da próxima tripulação a decolar de Baikonur, no Cazaquistão, rumo à Estação Espacial Internacional: Pavel Vinogradov, da Rússia, Jeffrey Williams, dos Estados Unidos, e o nosso Marcos Cesar Pontes.

Então chega a vez de eu fazer minha pergunta. Tentando fugir um pouco do lugar-comum dessas coletivas, resolvi jogar uma pimentinha. Perguntei aos três tripulantes se o fato de o anúncio da Expedição 13 (Vinogradov e Williams) ter demorado, em razão da necessidade da Nasa de acertar a compra da passagem para o astronauta americano (os Estados Unidos eram proibidos por lei, até pouquíssimo tempo atrás, de comprar vôos espaciais dos russos), teve algum impacto no treinamento deles. Enquanto eu perguntava (em português), via Pontes cochichando com o Williams, que por sua vez deu umas arregaladas de olhos. Oh-oh.

Então, pela primeira vez na coletiva, o representante da Roskosmos se levanta para dizer que essa pergunta era inapropriada, já que se tratava de uma questão administrativa. Para não ser completamente esquivo, Vinogradov, como comandante da missão, respondeu que quaisquer atrasos tolerados jamais afetaram a segurança da tripulação, e passou à próxima pergunta, sem permitir que Williams ou Pontes comentassem. Tudo no melhor estilo soviético.

Mas algumas coisas de fato mudaram. Eu não fui deportado e enviado para um gulag na Sibéria assim que a coletiva acabou. Muito pelo contrário, aliás. Depois de alguma insistência, e graças a muita diplomacia, conseguimos, eu e os outros jornalistas brasileiros, um "tour" de algumas das instalações de treinamento da Cidade das Estrelas, guiados pelo nosso astronauta favorito! Não, não Yuri Gagarin - este morreu em 1968, num trágico acidente de avião. Estou falando do Pontes, naturalmente.

ESO
O cosmonauta Yuri Gagarin (esq.) e o engenheiro Sergei Korolev
O cosmonauta Yuri Gagarin (esq.) e o engenheiro Sergei Korolev
A confusão bem que se justifica, no entanto. Gagarin esteve de fato presente lá ontem, se não em carne e osso, ao menos em espírito. Antes do tour pelas instalações de treinamento (uns simuladores da nave Soyuz e dos módulos russos da ISS que eu adoraria ter em casa), nós fomos levados a um pequeno museu na Cidade das Estrelas, cheio de preciosidades. Trajes espaciais usados de várias épocas, modelos em escala de espaçonaves e mesmo partes reais dos veículos usados pelos russos para explorar o cosmos estão lá expostos. Das quatro salas do museu, duas eram inteiramente dedicadas a Yuri Gagarin. Uma delas era seu escritório de trabalho, com a escrivaninha intacta, as coisas colocadas exatamente como estavam, e um relógio dependurado na parede, marcando sempre a mesma hora: 10h31. É, literalmente, a hora da morte, quando, em 27 de março de 1968, seu MiG-15 foi ao chão.

Deixou de ser um escritório para se tornar um local de cerimônias. Até hoje os cosmonautas, antes de partirem para Baikonur, passam no escritório, sentam-se nas cadeiras de madeira e assinam os documentos para sua partida, como se Gagarin, que se tornou chefe dos cosmonautas [indivíduo responsável por definir quem está em condições de voar] desde que concluiu sua jornada histórica ao redor da Terra em 12 de abril de 1961, ainda estivesse lá para dar sua bênção aos futuros viajantes das estrelas.

Rituais como esse são na verdade comuns entre os cosmonautas russos. Pontes ainda terá de passar por uma verdadeira via sacra antes de sentar no cockpit da Soyuz TMA-8, em Baikonur, no dia 30 de março, cheia de assinaturas em portas de alojamentos, sessões de velhos filmes de cinema da era soviética e pedidos de autorização para chefes militares antes do lançamento.

Nada disso é ruim. Muito pelo contrário, é a beleza de um país que preserva suas tradições, da melhor maneira possível. Não como lembranças de um passado remoto, mas como parte do que existe hoje. Essa mistura de passado e futuro, entre o hilário e o solene, é o que faz da Rússia, mesmo depois de tantos traumas e solavancos históricos, um lugar fascinante. Mesmo quando um táxi custa 4.000 rublos.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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