Pensata

Salvador Nogueira

16/02/2006

Caso de polícia

É inacreditável que tenha ficado longe das manchetes, mas aconteceu. É um escândalo --um roubo de 1 milhão. De estrelas.

A larápia foi a Via Láctea, e o delito acaba de ser revelado por um trio de astrônomos italianos. O trabalho dá uma nova perspectiva à história pregressa de um aglomerado globular chamado NGC 6218. Sim, ele, pobrezinho, foi a vítima.

ESO
Imagem do VLT mostra o centro do aglomerado globular NGC 6218
Imagem do VLT mostra o centro do aglomerado globular NGC 6218
Aglomerados globulares são grandes conjuntos de estrelas que se formaram juntas na mesma região do espaço durante a infância da Via Láctea, uns 13 bilhões de anos atrás. Esses agrupamentos são um ótimo objeto de estudo para astrônomos, uma vez que suas estrelas compartilham a mesma história, diferindo apenas em sua massa. Com isso, os astrônomos podem estudar a evolução de astros de tamanhos diferentes apenas comparando seus brilhos relativos. Enfim, uma coisa boa.

O NGC 6218, também chamado de Messier 12 (por ter sido catalogado pelo francês Charles Messier, em 1774), está localizado a cerca de 23 mil anos-luz da Terra. Ele é apenas um entre os cerca de 200 aglomerados globulares conhecidos na Via Láctea, mas sua história parece ter sido mais trágica que a de outros.

A afirmação, que contraria avaliações anteriores, é de Guido de Marchi, da ESA (Agência Espacial Européia), Luigi Pulone e Francesco Paresce, ambos do Inaf, na Itália. Eles redigiram um artigo já aceito para publicação no periódico científico "Astronomy and Astrophysics".

O título do estudo mostra que o trio de cientistas não é muito bom de marketing. Nele, eles apresentam uma questão que intriga a humanidade há muitos anos. "Por que a função de massa do NGC 6218 é plana?" A pergunta cifrada serve para apresentar o problema que revelou a ganância da nossa galáxia, que sem dó nem piedade tomou de assalto cerca de 1 milhão de estrelas do Messier 12. Hoje, o aglomerado tem apenas cerca de 200 mil.

ESO
Ilustração mostra órbita do aglomerado NGC 6218 ao redor do centro da Via Láctea
Ilustração mostra órbita do aglomerado NGC 6218 ao redor do centro da Via Láctea

A explicação proposta pelos cientistas é que a órbita do NGC 6218 na verdade o leve periodicamente para muito mais perto do centro da Via Láctea do que antes se pensava. Com isso, a interação gravitacional com a galáxia aumenta, e estrelas são arrancadas do aglomerado e colocadas em órbitas independentes ao redor do centro galáctico. É um assalto mesmo.

As observações, feitas com o VLT (Very Large Telescope) do ESO (Observatório Europeu do Sul), no Chile, revelaram uma estranha deficiência de estrelas de baixa massa. O normal nesses aglomerados é ter muito mais astros de pequeno porte do que os de grande. No Messier 12, no entanto, a distribuição parece ser estranhamente mais igualitária --para os íntimos, a função de massa é plana.

Os pesquisadores admitem que suas conclusões são incompatíveis com análises anteriores do Messier 12. Mas em compensação destacam que os dados parecem se encaixar muito melhor às observações feitas com o satélite europeu Hipparcos. Agora eles têm a expectativa de que o Gaia, sucessor do Hipparcos, ainda a ser lançado, confirme suas conclusões.

Uma coisa, no entanto, já parece certa: a criminalidade definitivamente atingiu a esfera cósmica. A Guarda Espacial que se cuide.

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Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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