Pensata

Salvador Nogueira

02/03/2006

O sonho e a política

"Mas por que, alguns dizem, a Lua? E eles podem também perguntar, por que escalar a montanha mais alta? Por que, 35 anos atrás, voar sobre o Atlântico? Por que o Rice joga com o Texas? Nós escolhemos ir à Lua. Nós escolhemos ir à Lua nesta década e fazer as outras coisas, não porque sejam fáceis, mas porque são difíceis. Porque aquela meta irá servir para organizar e medir o melhor de nossas energias e habilidades. Porque aquele desafio é um que estamos dispostos a aceitar, um que não estamos dispostos a adiar, e um que pretendemos vencer, e os outros, também."

Nasa
John F. Kennedy discursa na Universidade Rice, em 1961
John F. Kennedy discursa na Universidade Rice, em 1961
Com esse discurso, em 12 de setembro de 1961, o presidente americano John F. Kennedy justificou os esforços hercúleos dos Estados Unidos, sob seu comando, para enviar astronautas à superfície lunar antes dos russos, numa das mais acirradas competições do período que marcou a Guerra Fria.

Mais que isso, no entanto, o líder da nação americana parecia ter capturado a noção ancestral do que os humanos entendem como a necessidade de explorar -- da mesma maneira que, nos séculos 15 e 16, os europeus ganharam os mares, e que, no início do século 20, o Ocidente rumou para a conquista dos pólos terrestres e dos ares, a segunda metade do século 20 veria o espaço se transformar na próxima fronteira a ser explorada pela humanidade.

Eu sou um dos que acreditam que, em discursos como esse, Kennedy expressou algumas das verdades fundamentais da natureza humana. Agora, que ninguém se deixe inebriar pelo romantismo da situação e ache que o presidente americano fosse algum tipo de visionário ou poeta. Ele era, pura e simplesmente, um político.

Em 21 de novembro de 1961, apenas dez semanas após seu discurso inflamado e inspirador na Universidade Rice, Kennedy teve uma reunião com James Webb, então administrador da Nasa, a recém-fundada agência espacial americana. Webb tentava convencer seu chefe de que apostar tudo na Lua era arriscado demais. "Há verdadeiros desconhecidos sobre se um homem pode viver no ambiente sem gravidade", ele disse. Comprometer-se com um pouso lunar tripulado, prosseguiu, poderia deixar o país vulnerável a um fracasso. Em vez disso, Webb defendia que o pouso lunar fosse apenas parte de um grande esforço para entender o ambiente espacial e seus efeitos em humanos. Mas Kennedy estava resoluto.

"Esta é, gostemos ou não, uma corrida. Tudo que fazemos tem de estar ligado a chegar à Lua antes dos russos", respondeu o presidente. "[Isso] é a prioridade número um da agência e (...) exceto pela defesa, é a prioridade número um do governo dos Estados Unidos. Não fosse isso, não estaríamos gastando essa montanha de dinheiro, porque eu não estou tão interessado assim no espaço."

A conversa foi gravada em fita e apenas recentemente revelada, mostrando que Kennedy era muito mais político que visionário em assuntos espaciais --e um grande político. Sua "visão" carregou o país numa jornada até hoje inigualada rumo à Lua, concluída num momento em que os Estados Unidos enfrentavam forte recessão econômica. Desde 1969, os americanos são vistos como líderes absolutos no campo da alta tecnologia espacial, ainda que hoje seus ônibus espaciais estejam na garagem, velhos e cheios de problemas, e apenas as naves russas sigam em suas viagens orbitais para abastecer a ISS (Estação Espacial Internacional).

E isso não é uma aberração. Se olharmos mais de perto, descobriremos que toda a história da exploração espacial, desde o lançamento do primeiro satélite artificial pela União Soviética, o Sputnik-1, em 4 de outubro de 1957, é permeada --e alimentada-- por motivações políticas.

Divulgação/AEB
Lula, Pontes e Vladimir Putin posam no Kremlin, em 2005
Lula, Pontes e Vladimir Putin posam no Kremlin, em 2005
A mesma coisa agora, em versão tupiniquim, com o vôo do astronauta brasileiro Marcos Cesar Pontes à ISS no próximo dia 30. A real surpresa no fato de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva irá usar a viagem com fins políticos é que haja alguma surpresa. É uma conquista importante para o país, e Lula irá aproveitar cada segundo dos holofotes, como todos os líderes têm feito, em seus países e no exterior, desde 1957.

Ao perceber a oportunidade, e agarrá-la, Lula está apenas mostrando que, como a imensa maioria dos representantes de sua classe, ele é menos um sonhador e mais um político. E, sinceramente, nada contra; é a política que faz o mundo andar e homens pisarem na Lua.

O ponto é não confundir os resultados com as motivações. Nos anos 1960, o fato de que a única real motivação do presidente Kennedy para a jornada lunar foi a disputa com a União Soviética não tornou o feito menos importante. A conquista da Lua é um momento definidor do século 20 e, mais que isso, do enorme potencial que aguarda o ser humano na exploração do espaço.

O mesmo, guardadas as devidas proporções, vale para a missão de Pontes: o fato de que sua motivação é eminentemente política (e é; fontes ligadas ao governo dizem que a missão só saiu mesmo porque Lula se apegou à idéia de ter o astronauta brasileiro no espaço antes do fim de seu mandato) não desmerece o potencial que ela oferece.

Pela primeira vez o programa espacial brasileiro estará nos holofotes por algo de bom --uma chance preciosa de realizar ciência nacional num ambiente de microgravidade por oito dias seguidos. Não serão dez minutos de bate-papo entre Lula e Pontes, durante a primeira comunicação com a Terra em teleconferência, que estragarão a ocasião.

Claro, tudo ficaria mais fácil se Lula tivesse a eloqüência de Kennedy, mas que fazer?

P.S.: Para quem quiser discutir com outros leitores o conteúdo desta coluna, vale visitar a comunidade no orkut recentemente criada com esse fim.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca