Pensata

Salvador Nogueira

06/04/2006

O valor de um astronauta

Os críticos são soterrados pelos fatos. Um a um, eles tentam dizer que o valor de um astronauta brasileiro, nas circunstâncias atuais, é nada ou quase nada, que tudo não passa de um delírio megalomaníaco ou de um esforço político-eleitoreiro (não tão) barato. O que eu sugiro a todos esses críticos é que eles simplesmente dêem um passo para trás, com o objetivo de enxergar o que está realmente acontecendo à volta deles, em vez de brigar com a imagem.

Efe
Marcos Pontes, antes de entrar na nave Soyuz TMA-8
Marcos Pontes, antes de entrar na nave Soyuz TMA-8
O astronauta é uma figura quase arquetípica. É um herói dos nossos tempos. É o exemplo pelo qual as crianças se inspiram, é a referência do que há de melhor no ser humano. As pessoas precisam dos astronautas. É com eles que elas se identificam, nesse esforço caro mas necessário de desvendar os segredos das estrelas. O astronauta representa o idealismo e a curiosidade que todos gostamos de cultivar. Não é à toa que a presença de um viajante espacial causa tamanho impacto na sociedade.

Eu nunca vi a Rede Globo gastando dez minutos por dia em seu "Jornal Nacional" para falar de um tema espacial --nacional ou estrangeiro-- antes. Todos os jornais impressos trazem notícias diárias sobre o andamento da Missão Centenário, nem que seja para contar pequenas curiosidades de como Marcos Cesar Pontes está vivendo a bordo da Estação Espacial Internacional.

Nesta mesma Folha Online, uma enquete recente mostra que, para 76% das pessoas, a presença de um astronauta brasileiro no espaço aumentou seu interesse pelo tema. Eu acho difícil que toda essa resposta seja somente porque as pessoas são bobas, como gostariam de fazer crer os críticos. Prefiro pensar que, quando falamos de homens e mulheres no espaço, tocamos num nervo social que os críticos preferem ignorar.

Eu, pessoalmente, duvido que houvesse tanto apoio popular aos programas espaciais dos Estados Unidos, da Rússia, da Europa, do Japão e do Canadá, não fossem seus segmentos tripulados. O astronauta é o ponto de contato entre o esforço espacial e a população --é o elemento humano, insubstituível.

Só por isso, e por mais nada, já seria perfeitamente justificável defender que o Brasil tenha um segmento tripulado em seu programa, e que continue a investir nesta linha, treinando novos astronautas, após a volta de Pontes. Mas limitar a argumentação a isso seria muito pouco.

É inegável que os programas tripulados são os mais vistosos, e que desenvolver essa linha é uma ação de cunho estratégico e sinalizador no âmbito da política internacional. Numa iniciativa sábia, em 1997, o Brasil não se limitou a treinar um astronauta, mas contextualizou isso na entrada do país no programa de construção da Estação Espacial Internacional. A visibilidade ganha pelo país com a iniciativa --que nem foi tão cara quanto gostam de sugerir seus detratores-- é óbvia. A estação é o maior projeto de cooperação internacional já realizado na história da humanidade. Dele figuram as maiores potências tradicionais, mais o Brasil --único país em desenvolvimento na lista.

Falem o que quiser, mas participar da ISS pinta uma boa imagem para que o Brasil defenda, por exemplo, sua posição para conquistar um assento no Conselho de Segurança da ONU. É uma demonstração clara de disposição do país para se envolver em projetos internacionais de vulto. Há um valor estratégico importante em ter astronautas.

Não é à toa que a China decidiu desenvolver seu próprio programa espacial tripulado e já realizou, sozinha, dois lançamentos com astronautas, em 2003 e 2005. Outros emergentes na Ásia, como a Coréia do Sul, estão também tentando emitir essa sinalização --os coreanos estão decididos a bancar o envio de astronautas próprios ao espaço com os russos.

Tuca Vieira/F.Imagem
Tripulação da Missão Centenário parte rumo à Estação Espacial
Tripulação da Missão Centenário parte rumo à Estação Espacial
Padeceram, no entanto, de falta de visão: como não são participantes da ISS, são agora obrigados a entrar no fim da fila, que já conta com dois turistas espaciais auto-financiados, um japonês e um húngaro. Resultado: a primeira viagem de um sul-coreano não deve acontecer antes de 2008. O Brasil, como é um país participante, teve prioridade e saltou logo para o início da fila; daí o vôo de Pontes ter ocorrido agora.

E tudo isso sem entrarmos no mérito do que de bom produziu a missão do astronauta brasileiro, em termos concretos. Claro que há muito o que dizer aí também.

Primeiro: a Missão Centenário consistiu na primeira utilização nacional dos recursos da ISS para experimentos. Como o Brasil segue sendo um dos países participantes, as pesquisas devem continuar ocorrendo a bordo, mesmo sem a presença de um astronauta brasileiro.

Há quem diga que os experimentos enviados com Pontes ao espaço não são lá grande coisa. Para alguns deles, isso é mesmo verdade. No entanto, é bom que se diga que esta não é uma deficiência do programa espacial. À AEB (Agência Espacial Brasileira) cabe a responsabilidade de oferecer aos pesquisadores brasileiros as condições de fazer pesquisa de microgravidade importante; aos pesquisadores, cabe a responsabilidade de criar experimentos à altura.

Com o tempo, é natural que os experimentos brasileiros se tornem mais sofisticados, de forma a explorar de modo mais completo os recursos da estação. O próprio Pontes, em entrevista recente dada do espaço, pediu que os críticos da missão na comunidade científica propusessem experimentos que dessem bom uso à ISS no futuro --ou seja, o importante é que a porta está aberta para nós.

Além disso, a Missão Centenário propiciou aos pesquisadores brasileiros a primeira oportunidade de qualificar experimentos para uma nave tripulada --tarefa que é mais complicada do que soa. Uma série de procedimentos de segurança precisa cercar os equipamentos, de forma a proteger os astronautas que irão manuseá-los no espaço. A experiência brasileira nisso era quase zero (mesmo nos experimentos que o Brasil havia enviado ao espaço nos ônibus espaciais americanos, oito anos atrás, o envolvimento nacional com os procedimentos de segurança foi mínimo), agora já sabemos como fazer.

Quem saiu ganhando foi o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que teve o seu LIT (Laboratório de Integração e Testes) certificado para preparar experimentos de missões tripuladas. É um selo de qualidade que cai bem a essa instalação, que não deve nada a outras do tipo localizadas em outros países, supostamente "mais desenvoltos" que nós em tecnologias espaciais.

Reuters
Chegada de Pontes à ISS
Chegada de Pontes à ISS
Todo mundo fala que ter astronautas é coisa para gente grande, com vultosos programas espaciais. (Meu chefe na Folha mesmo, Claudio Angelo, ecoou esse sentimento em um artigo publicado logo depois do início da missão de Pontes.) Então vale lembrar que o orçamento da Roskosmos, agência espacial russa, para 2006 é de pífios US$ 900 milhões --e eles fazem dois vôos tripulados e quatro vôos de carga à ISS todo ano. O orçamento do Brasil, que agora começa a ter feições mais adequadas às propostas do país no espaço, se aproxima dos US$ 200 milhões. Aposto que você achava que a diferença seria maior, não é?

Pois é. Claudio Angelo usa como termo de comparação a missão Cassini-Huygens, parceria entre Nasa e ESA para a exploração de Saturno e suas luas. Não poderia haver comparação pior --o custo dessa missão é amortizado nos orçamentos desde os anos 1980, quando começou a ser desenvolvida! Ninguém faz um projeto desses de um ano para o outro, e até mesmo o Brasil pode se dar ao luxo de ter associações modestas com missões como esta --iniciativas que dariam tremenda visibilidade, com potencial baixo custo.

É nesses moldes, por exemplo, que se dá a participação brasileira no satélite franco-europeu Corot, que fará uma busca sistemática por planetas como a Terra fora do Sistema Solar. Com lançamento marcado para o ano que vem, o Corot ganhou envolvimento brasileiro com a mera cessão das antenas de Alcântara para a recepção dos dados do satélite. A um custo muito baixo, o Brasil se tornou parceiro no projeto, com direito sobre os dados científicos.

O Brasil é um país que só agora começa a se destacar para valer em missões espaciais de vulto. Parcerias como essas devem ser encorajadas, não criticadas e alvejadas. A oportunidade de lançar um astronauta brasileiro serve como um símbolo para tudo isso, e, se eu fosse presidente da AEB, o que eu faria, assim que Marcos Pontes pusesse os pés no país, é convocar uma coletiva e, ao lado do nosso primeiro astronauta, anunciar que a agência faria nova seleção para futuros viajantes espaciais.

Sérgio Gaudenzi, atual presidente da AEB, tem batido numa tecla importante, ao dizer repetidas vezes que o programa espacial precisa ser um programa de Estado, não de um ou outro governo. Símbolos maiores que a vida, como os astronautas, podem muito bem alavancar isso.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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