Pensata

Salvador Nogueira

11/05/2006

As verdadeiras máquinas do tempo

No fim do mês de março, completei minha 27ª volta dada ao redor do Sol, e posso testemunhar: jornalista de ciência ganha presentes estranhos quando faz aniversário.

Veja só. Do grande amigo Ricardo Bonalume Neto, ganhei dois recortes de jornal. Sim, dois recortes de jornal. E não eram quaisquer jornais. Eram jornais velhos, carcomidos.

Um dos recortes era a primeira página do "New York Times" do dia 29 de janeiro de 1986 --data em que o venerável diário americano noticiou o acidente do ônibus espacial Challenger. Já o outro era uma página da Folha, datada de 28 de janeiro de 1996. A reportagem: os dez anos desde a tragédia com a Challenger, narrados pelo próprio Bonalume.

Não se trata de obsessão catastrofista. Poucos meses antes, no dia 28 de janeiro de 2006, eu havia publicado, na mesma Folha, minha própria incursão sobre a história --20 anos sem a Challenger. Daí o valor sentimental do presente, embrulhado na sensação de que as gerações se sucedem, mas as histórias ficam.

O que me leva a um outro presente que ganhei, também muito interessante. Um livro velho --ainda mais velho que os recortes. "The Exploration of Space" ("A Exploração do Espaço", numa tradução livre), por Arthur C. Clarke.

A edição que ganhei era de 1958, mas o texto original remontava a 1951. (Provavelmente o furor do lançamento do Sputnik em 1957 fez com que o editor se lembrasse do pequeno volume que havia publicado anos atrás e concluísse que ressuscitá-lo, em forma atualizada, lhe renderia mais uns bons trocados.)

Não sei de onde meu amigo Marcelo Leite foi tirar esse livro, mas não resta dúvida de que foi um achado incalculável para um fissurado por espaço como eu. Ler livros antigos é o mais perto que se pode chegar de ter sua própria máquina do tempo --abrem-se janelas para o passado, que permitem que descubramos como aquelas pessoas pensavam, o que sabiam e, sobretudo, o que ambicionavam para o futuro.

E o mais incrível foi perceber que os recortes e o livro formavam, juntos, praticamente a mesma mensagem: quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas.

É impressionante como Clarke anteviu com precisão, antes mesmo dos primeiros lançamentos bem-sucedidos à órbita terrestre, muitos dos desenvolvimentos que veríamos nas décadas subseqüentes. Suas descrições de uma espaçonave para pouso na Lua, por exemplo, pareceram bastante acuradas, comparadas ao que resultou no Projeto Apollo, da Nasa, nos anos 1960.

Sua noção de usos do espaço para benefício terrestre também foi bem precisa: basta para isso dizer que o escritor inglês foi o primeiro a sugerir para fins de telecomunicações globais o uso de satélites colocados na órbita geoestacionária. Localizada sobre a linha do Equador, a 36 mil quilômetros de altitude, essa órbita faz com que um artefato ali colocado esteja sempre posicionado sobre o mesmo ponto da superfície da Terra, o que se converte em um óbvio benefício para a transmissão de sinais sempre para a mesma região do globo, e a qualquer hora.

Mas o mais interessante, óbvio, acaba sendo não o que Clarke acertou (ou induziu a ocorrer, se levarmos em conta que escritores como ele estavam interferindo e participando de todo o processo). O mais legal e revelador é o que ele errou.

O livreto, por exemplo, revela algumas das expectativas desesperadamente otimistas que os cientistas da época tinham de encontrar vida em outros planetas do Sistema Solar. Vênus, para Clarke, era um lugar acima de tudo misterioso, coberto por nuvens que impediam completamente discernir, por telescópios, o que havia lá embaixo. Apesar disso, o escritor não esperava de jeito nenhum a descoberta posterior de que a atmosfera venusiana fosse tão densa a ponto de esmagar praticamente tudo que tentasse chegar ao solo.

No "nível do mar" venusiano (e isso é uma figura de linguagem, uma vez que aquele mundo não possui mares), a pressão é 90 vezes mais intensa do que no terrestre. Os soviéticos aprenderam duras lições sobre isso, ao tentar enviar sondas até lá. Cada uma era mais resistente que a anterior, mas custou até que se fizesse uma que resistisse, ao menos por algum tempo, à pressão da baixa atmosfera venusiana.

Suas visões mais otimistas, no entanto, estavam guardadas para a Lua e para Marte. Embora soubesse que o satélite natural da Terra, na melhor das hipóteses, possuía uma atmosfera muito rarefeita (e hoje sabemos que nem isso), Clarke especula em seu livreto de 1958 sobre a existência de formas de vegetação lunar! O mesmo tipo de raciocínio se aplicava a Marte, embora a essa altura ele já descartasse a hipótese de uma civilização avançada responsável pelos famosos "canais de Marte", como advogou o astrônomo americano Percival Lowell no fim do século 19.

Mercúrio, em razão de sua proximidade com o Sol e sua pequenez, foi descartado por Clarke como um possível abrigo para a vida. Quanto aos planetas exteriores (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) e suas luas, a distância impedia que observações telescópicas revelassem algo útil para especulações sobre o assunto.

O veredicto de Clarke, então, para a vida foi: dos cinco corpos planetários (a Lua aí incluída) que pudemos investigar sem espaçonaves, pelo menos três deles têm alguma chance de possuir formas de vida (Lua, Marte e, claro, a Terra), e um ainda não pode ser descartado (Vênus). Ou seja: ao que parece, atividade biológica é razoavelmente comum no Universo.

Saltemos para a época atual. Hoje, as velhas idéias dos anos 1950 sobre vida no Sistema Solar quase todas caíram em desuso. A Lua é estéril, sabemos disso. Vênus é o pior lugar do mundo para se viver, embora alguns cientistas especulem sobre a existência de bactérias na alta atmosfera. Marte também não é tão hospitaleiro quanto gostaria de crer Clarke, embora ainda guarde algumas cartas na manga no que diz respeito à vida. Quanto a vegetação, não se vê em parte alguma. A vida no Sistema Solar Interior parece, na melhor das hipóteses, ser composta por uns pouco micróbios "sobreviventes", salvo pela espetacular história de sucesso da Terra. Mas o mais provável mesmo, aceitemos, é que não haja nada vivo nos vizinhos mais próximos da Terra.

Bem, parece um avanço palpável no conhecimento, não? Tente de novo. Na verdade, a única coisa que fizemos foi expandir as fronteiras. Agora, as idéias realmente especulativas --as quais ainda não podemos sequer começar a descartar-- dizem respeito às chances de vida nas luas dos planetas gigantes.

Europa, um satélite natural de Júpiter, subitamente ganhou status entre os fãs de vida alienígena, depois que as naves Voyager-1 e 2 passaram por lá e revelaram uma superfície que sinaliza muita coisa interessante acontecendo por baixo dela (especula-se sobre a existência de um oceano global de água salgada sob a crosta de gelo da lua).

Titã, uma das luas de Saturno, também é de alto interesse, em razão das copiosas quantidades de moléculas orgânicas ali presentes. São compostos baseados em carbono que poderiam ter servido, na Terra, como alicerces para o surgimento da vida.

A mais recente adição ao grupo foi Encelado, uma pequenina lua saturnina, que parece possuir grande atividade interna, por conta do efeito de marés provocado pelo gigante Saturno, e poças de água líquida perto da superfície. A água é considerada o composto mais essencial à vida, por sua capacidade de propiciar um ambiente adequado para todas as reações químicas exigidas pelas atividades biológicas.

O que de fato sabemos sobre vida nesses lugares? Provavelmente tanto quanto Clarke sabia sobre vida na Lua, em Marte ou em Vênus.

Possivelmente, daqui a uns 50 anos, alguém vai tropeçar neste texto e se deliciar com a visão absolutamente ingênua, e ao mesmo tempo inspirada, que temos hoje desses ambientes alienígenas que compõem o Sistema Solar. Sua atenção então estará nos planetas que giram ao redor de outras estrelas, misteriosos mundos que somente em meados dos anos 1990 começaram a ter sua existência revelada. Especulações desvairadas circularão então sobre o que pode haver de tão especial nesses lugares. Alguns anos depois, elas serão substituídas, ou alteradas, por fatos, que por sua vez trarão novas perguntas, cujas respostas virão acompanhadas de novos mistérios, que então...

Quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas.

P.S.: Agradeço muito a quem sentiu a falta do Mensageiro Sideral durante as últimas semanas. Muitos se perguntaram sobre o que teria acontecido. Eu explico: estive viajando numa espaçonave conversível, último ano, modelo interestelar. Aí acabei não resistindo e tive de acelerar, até atingir velocidades relativísticas. Por sorte não havia ninguém da Guarda Espacial por perto. Mas, enquanto várias semanas se passaram para vocês aqui na Terra, a bordo vivenciei apenas sete dias. Coisas de Einstein, sabe como é... ;-)
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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