Pensata

Salvador Nogueira

22/09/2005

Prisioneiros de Aristóteles

Prepare-se para pegar em armas, camarada! A revolução copernicana ainda não acabou. Duvida? Pergunte a Jon Miller. Ele é o responsável pelo Centro de Comunicações Biomédicas, em Chicago, Estados Unidos, órgão que conduz periodicamente pesquisas para avaliar a alfabetização científica da população daquele país. Seus últimos resultados mostram que um em cada cinco americanos ainda acha que o Sol gira em torno da Terra.

E, se isso soa inacreditável, saiba que o "privilégio" não é exclusivo dos eleitores de George W. Bush. Pesquisas semelhantes feitas em meados dos anos 1990 em países como Alemanha e Reino Unido apontam a mesma coisa. Entre os alemães, 16% afirmaram que o Sol girava ao redor da Terra. Entre os britânicos, 19% dos entrevistados compartilhavam dessa convicção. Nos países em desenvolvimento, a coisa não deve ser melhor. Ou seja, a luta pela revolução definitivamente não acabou.

Por sorte, esse é um daqueles casos em que a pena é mais poderosa que a espada. E nada como se inspirar nos que começaram esse ferrenho combate para prosseguir na batalha. Voltemos, portanto, ao longínquo século 16, época em que a última palavra em astronomia era o trabalho de Cláudio Ptolomeu, sábio que viveu e morreu do segundo século depois de Cristo. Sim, o homem ficou na moda por pelo menos uns 1.400 anos. (Morra de inveja, Gisele Bündchen.)

Ptolomeu baseou seu modelo do Universo no velho cosmos grego, sumarizado nas idéias de Aristóteles. Para ele, a Terra permanecia imóvel, no centro de tudo, enquanto o resto --o Sol, a Lua, os outros planetas e as estrelas-- girava ao seu redor. O modelo aristotélico não explicava com exatidão todos os movimentos celestes, e a solução de Ptomoleu foi, em vez de alterá-lo radicalmente, inserir complicações que dessem conta das discrepâncias. A estratégia colou e ganhou o aval da Igreja, que viu no modelo uma ressonância com as idéias bíblicas de que a Terra e seus habitantes eram o ponto focal da Criação. A partir daí, tornou-se perigoso defender qualquer coisa diferente.

Eis que nasce Nicolau Copérnico, em Torun, pequena cidade da Polônia, em 1473. Depois que seu pai morreu, quando tinha dez anos, foi criado pelo tio, que queria fazer dele um bispo. Mas sua verdadeira paixão sempre foi a astronomia. Em 1514, ele escreveu um pequeno tratado para os amigos, reunindo suas idéias bombásticas --a Terra era apenas mais um planeta entre os demais, girando ao redor do Sol, o verdadeiro centro do Universo. A recepção não foi acolhedora, e Copérnico passou os anos seguintes trabalhando em sua grande obra às escondidas, sem intenção de publicá-la. O livro, "Das Revoluções dos Orbes Celestes", só foi tornado público quando o autor estava em seu leito de morte, em 1543.

Nele, Copérnico abandona a moda e vai buscar inspiração em outro velho grego, Aristarco de Samos. Até onde se sabe, esse sim foi o primeiro sujeito a propor o heliocentrismo (o Sol no centro). Acontece que ninguém na época prestou muita atenção ao que ele dizia, com toda a badalação em cima do grande Aristóteles (morto em 322 a.C., 12 anos antes do nascimento de Aristarco). Ao retomar a idéia, Copérnico pegou a trilha certa. Mas, para colocar o Sol definitivamente no centro, ainda seria preciso de alguém mais corajoso e agressivo. O mundo precisava de um Galileu Galilei.

Reprodução
Pintura feita por volta de 1639 mostra Galileu Galilei (1564-1642)
Pintura feita por volta de 1639 mostra Galileu Galilei (1564-1642)
O italiano nasceu em Pisa, em 1564. De espírito rebelde, abandonou a carreira na medicina para se dedicar à matemática e à astronomia. Tomou conhecimento das idéias de Copérnico e virou seu maior defensor. Quase foi executado pela Inquisição depois de publicar seu "Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, Ptolomaico e Copernicano", de 1632, obra francamente favorável ao polonês. Após abjurar tão horrendas heresias, pegou uma pena "leve": prisão domiciliar perpétua, e uma porção de "Pai-Nossos" e "Ave-Marias" para acompanhar. Mas isso não o impediu de dar continuidade à revolução copernicana. O gênio já estava fora da garrafa.

Hoje, o quadro é diferente: os partidários de Copérnico são maioria, e até a Igreja já admitiu que pegou pesado demais com o pobre Galileu. Mas não se iluda: de uma forma muito sutil, o geocentrismo ainda vive, imerso na consciência da esmagadora maioria dos seres humanos. Isso porque Aristóteles, além de simplesmente dizer que a Terra era o umbigo do Universo, dividiu o cosmos em dois mundos distintos. A esfera sublunar, da Lua para baixo, era uma coisa; o que estava além dela era outra completamente diferente.

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Desenho de Galileu para seu 1º livro mostra irregularidades da superfície da Lua
Desenho de Galileu para seu 1º livro mostra irregularidades da superfície da Lua
O mundo sublunar era o ambiente das transformações, das imperfeições. Era onde as coisas aconteciam, onde nós morávamos. Lugar de mudanças, aventuras, alegrias e tristezas. Em contrapartida, o que havia acima da Lua era imutável. Sempre igual, intocável, infinitamente belo, reproduzindo a forma mais perfeita, a esfera, por todos os tempos, desde o mais longínquo passado e pela eternidade afora. (Boceje aqui.)

E não é assim que a maioria das pessoas pensa hoje? Que o mundo "emocionante" é o daqui de baixo, e que lá em cima não acontece nada importante ou digno de nota? Talvez seja o caso de voltarmos a pedir socorro ao Sr. Galileu.

Em 1609, depois de ouvir falar numa incrível invenção holandesa capaz de aumentar imagens de objetos distantes, o italiano construiu seu primeiro telescópio. Aperfeiçoou rapidamente sua máquina, até possuir o dispositivo mais eficiente do mundo à época, capaz de aumentar imagens em até 30 vezes.

Municiado pelas idéias de Copérnico, ele estava pronto para começar a verdadeira demolição do mundo aristotélico. Apontou seu telescópio para a Lua e constatou facilmente que aquela não era uma esfera perfeita, como predizia a sabedoria antiga, mas um globo cheio de imperfeições, montanhas e vales, exatamente como a Terra. Ao apontar seu instrumento para Júpiter, Galileu descobriu quatro pequenas estrelas girando ao redor dele. Para Aristóteles, tudo orbitava em torno da Terra, mas agora havia quatro pequenos objetos que, alheios aos mandamentos do grego, insistiam que, para eles, o centro do Universo era Júpiter e ponto final.

Galileu reuniu esse primeiro conjunto de descobertas num livro, publicado em 1610: "Sidereus Nuncius", ou "Mensageiro Sideral". A mensagem, naturalmente, era a de que havia mais coisas entre o céu e a terra do que supunha a vã filosofia aristotélica. E que talvez não houvesse tantas diferenças assim entre o mundo de cá e o de lá.

Isaac Newton, inglês nascido no ano da morte de Galileu, 1642, completou o serviço. Ao desenvolver sua teoria da gravitação universal, terminou de soldar a esfera sublunar com suas congêneres celestes: a mesma força que impelia uma maçã ao chão mantinha a Lua em órbita ao redor da Terra, e a Terra em torno do Sol. A física daqui é a mesma de lá.

Claro, não é fácil aceitar essa realidade de que não somos o auge do Universo, mas apenas um ponto insignificante, numa imensidão desconhecida. Fere o nosso orgulho. Para os religiosos, é desagradável o pensamento de que Deus não teve em mente um lugar especial para nosso planeta no Universo. O astrônomo americano Carl Sagan chamou essas dolorosas etapas de conscientização da posição da Terra e da humanidade no cosmos de "as grandes humilhações". Daí o fato de que a maioria das pessoas prefere hoje acreditar que estudar e explorar o espaço é perda de tempo, que as coisas realmente importantes acontecem aqui no chão - neste chão. Elas ainda são prisioneiras intelectuais de Aristóteles.

Mas não precisam ser. O que Carl chamou de "grandes humilhações" eu prefiro ver como "grandes reafirmações". Ao longo da emocionante história da ciência, descobrimos que a Terra, pálido ponto azul que serviu de cenário para toda a aventura humana até agora, é apenas um mundo pequenino, dos vários que giram ao redor do Sol, uma estrela medíocre dentre as 200 bilhões que fazem voltas em torno do centro da Via Láctea, uma galáxia dentre centenas de bilhões de tamanho parecido, espalhadas por todo o Universo observável. E pode haver ainda mais, além desse distante horizonte.

Só neste nosso minúsculo canto do cosmos existem cerca de 6 bilhões de criaturas pensantes, com o potencial para se abismar com sua pequenez diante do todo. Talvez haja lá fora muito mais seres com capacidades semelhantes, fazendo-se as mesmas perguntas. Mas o número, maior ou menor, não muda o fato essencial: somos todos singulares. Não veremos nenhum outro planeta exatamente igual à Terra; nenhuma outra espécie igual ao ser humano; nenhuma pessoa como você. Não importa quantos de nós existam ou quão vasto seja o cosmos, sempre poderemos nos considerar raros, especiais. E descobrir isso envolve necessariamente olhar para fora. Somos todos cidadãos do Universo.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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