Pensata

Salvador Nogueira

20/10/2005

Onde nenhum brasileiro jamais esteve

Nem parece verdade. O astronauta Marcos Cesar Pontes já está "trancafiado" no centro de treinamento de cosmonautas da Rússia, se preparando para seu primeiro vôo ao espaço. A data para o lançamento foi marcada: 22 de março próximo. Cabe aqui um "aleluia".

O brasileiro, nascido em Bauru (interior do Estado de São Paulo) e piloto da Força Aérea Brasileira, havia sido selecionado pelo governo brasileiro em 1997, entre um sem-número de candidatos. Dali foi mandado para o Centro Espacial Johnson, em Houston, Texas, onde, no ano seguinte, iniciou seu treinamento de astronauta com a Nasa. Desde então tem pacientemente esperado --e negociado-- a possibilidade de colocar seus conhecimentos em prática num vôo espacial.

O sonho está muito perto de virar realidade. Pontes iniciou no fim da semana passada seu treinamento na famosa "Cidade das Estrelas", nos arredores de Moscou. O centro é o mesmo que realizou a preparação do cosmonauta Yuri Gagarin. Em 12 de abril de 1961, Gagarin se tornou o primeiro ser humano a ir ao espaço.

marcospontes.net
Astronauta Marcos Pontes, em frente ao simulador da Soyuz
Astronauta Marcos Pontes, em frente ao simulador da Soyuz
É em meio a esse ambiente de primazia e reverência ao passado que o brasileiro inicia a reta final antes da decolagem. Na última segunda-feira, depois dos primeiros exames médicos, o astronauta fez sua primeira aula prática num simulador da Soyuz, a venerável espaçonave russa que o levará à Estação Espacial Internacional (ISS) no ano que vem.

O veículo não prima pelo conforto. É uma nave apertada, com massa total de apenas sete toneladas (contra as mais de cem do ônibus espacial) e capacidade para três tripulantes. Mas Pontes não se incomodou. "Eu me senti ótimo entrando lá pela primeira vez. O tamanho é excelente para mim. Feito sob medida", diz ele, rindo, com seus modestos 1,68m de altura.

AEB
 Lula, Pontes e Putin em cerimônia no Kremlin (Moscou)
Lula, Pontes e Putin em cerimônia no Kremlin (Moscou)
Na terça, o astronauta foi liberado dos trabalhos para participar da assinatura do acordo que garantirá sua missão, evento realizado no Kremlin que teve a presença dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Vladimir Putin. Na quarta, voltou ao trabalho. Segundo Sérgio Gaudenzi, presidente da AEB (Agência Espacial Brasileira), é como se ele fosse "um aluno de colégio interno", dada a rigidez com que os russos tratam os procedimentos de treinamento.

Embora esteja apenas começando a arranhar algumas palavras na língua russa, Pontes passará os próximos cinco meses praticando em aulas e estudando com manuais técnicos. Com seu treinamento na Nasa, ele aprendeu as minúcias de operação do ônibus espacial e dos módulos americanos da Estação Espacial Internacional; agora, conhecerá também como se operam uma Soyuz e os módulos russos do complexo orbital. É a formação mais completa que um astronauta pode ter.

Vale dizer que o vôo de Pontes em março, por mais midiático que seja, é apenas a cereja do bolo. A oportunidade para o Brasil ter o seu próprio astronauta na verdade se abriu com a entrada do país no grupo seleto de nações participantes da construção da ISS. O projeto tem a liderança de Estados Unidos e Rússia, com participações marcantes de Canadá, Japão e vários países europeus.

Nasa
Estação Espacial Internacional, fotografada pelo Discovery
Estação Espacial Internacional, fotografada pelo Discovery
Para quem não se impressiona muito com a ISS, vale dizer que ela é "só" o maior projeto de cooperação internacional da história da humanidade, um complexo com custo total estimado em mais de US$ 95 bilhões que, quando ficar pronto, terá o tamanho de um campo de futebol, em pleno espaço.

A estação é basicamente um laboratório, voltado para a realização de estudos em microgravidade. Sua principal função, agora que os americanos já miram retornar à Lua como sua meta número um, é ensinar os humanos a viver e trabalhar no espaço. Cá para nós, é inegável que ela já está fazendo isso: a ISS está permanentemente ocupada por tripulações humanas desde 2000 --um recorde.

Desde os tempos da Guerra Fria, os astronautas são tidos como heróis. Pontes certamente merece a honraria. Não só porque, aos 43 anos, deve se tornar o primeiro brasileiro a deixar o planeta Terra, mas principalmente porque teve de "bater o escanteio e ir para a área cabecear" durante esses oito anos, desde que foi escalado para representar o Brasil no espaço.

Agora que tudo está assinado e resolvido, parece que foi fácil. Mas nosso astronauta teve de fazer um curso-relâmpago de diplomata, burocrata e relações-públicas para navegar em meio às incertezas no seio do governo brasileiro, que por vezes parece se pautar muito mais por politicagens do que por políticas.

Pontes fez as coisas caminharem quando tudo parecia perdido. Serviu como escudo para o país e inventou um milhão de desculpas diferentes para a Nasa, a fim de justificar os imperdoáveis atrasos no cumprimento de nossa parte no acordo de participação no projeto. Negociou com o Senai para que a instituição fabricasse protótipos das peças brasileiras para a estação, entregando o acerto nas mãos da AEB, que só precisou correr para o abraço. Conversou com deputados para impedir que os conflitos internos alvejassem o programa no Congresso. Como eu disse, cruzou e cabeceou. E, mais que isso, não ficou se vangloriando disso para ninguém. Deixou todo mundo aparecer bem na fita, sair bonito nas fotos.

Mais do que garantir com isso a execução de seu vôo espacial, Pontes deu ao Brasil um futuro no espaço. Depois que voltar da ISS, pode apostar que ele continuará nessa mesma batalha, lutando para que o primeiro astronauta brasileiro não seja também o último.

E para que afinal vamos querer mais astronautas?

A Royal Astronomical Society, do Reino Unido, tem uma boa resposta a essa pergunta. Ela acaba de lançar um relatório, pedindo ao governo britânico que modifique sua política corrente a fim de apoiar também a exploração tripulada do espaço.

"Constatamos que as questões científicas profundas relacionadas à história do Sistema Solar e à existência de vida além da Terra podem ser melhor --talvez somente-- respondidas pela exploração humana da Lua ou de Marte, apoiada pelos sistemas automáticos apropriados", disse o relatório. "Nós, portanto, consideramos oportuno que o governo de Sua Majestade reavalie sua longa oposição ao envolvimento britânico na exploração espacial humana."

E prossegue: "Enquanto a exploração da Lua e de Marte pode e está sendo feita com missões não-tripuladas, as capacidades de naves robóticas ficarão bem atrás daquelas de exploradores humanos até onde se pode prever".

Entre as questões a serem investigadas por astronautas estão a história pregressa do Sol (por meio da "assinatura" que ele deixou impressa ao longo do tempo na superfície lunar, que não é protegida da radiação solar por uma atmosfera) e a busca por vida extraterrestre em Marte.

(Hora do merchandising: mais detalhes sobre esses temas podem ser encontrados no meu livro, "Rumo ao Infinito - Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço", que, a propósito, é prefaciado por Marcos Pontes.)

Os cientistas britânicos também apontaram o potencial da Lua enquanto berço de projetos de observação, como eu sugeri aqui na semana passada. "Presumindo uma presença humana, a Lua oferece um excelente sítio para astronomia, com o lado afastado e as regiões polares da Lua escudados da 'poluição' da Terra", argumentam.

Como é óbvio para qualquer um que tenha boa-vontade de se debruçar sobre o tema, não faltam motivos para defender a presença de humanos no espaço. E, como Pontes gosta de dizer, as principais razões não são as que conhecemos, mas as que ainda estamos por conhecer, ao ir até lá. A despeito das dificuldades, das pedras no meio do caminho, o espírito de exploração e de aventura, tão caro ao ser humano, precisa prevalecer.

Cem anos depois que o aeronauta Alberto Santos-Dumont construiu seu primeiro avião, Marcos Cesar Pontes será o primeiro brasileiro no espaço. Que, como o primeiro, ele seja só o precursor de uma tradição, e inspire os brasileiros a também sonharem com um futuro nas estrelas. O céu é o limite.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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