Pensata

Salvador Nogueira

27/10/2005

O monge italiano e o fogo das estrelas

O velho Giordano Bruno é que tinha razão. Na segunda metade do século 16, o monge dominicano ousou afirmar: "Sóis inumeráveis existem; Terras inumeráveis giram ao redor desses sóis de uma maneira similar à que os sete planetas giram ao redor do nosso sol". E foi mais longe: "Seres vivos habitam esses mundos." Na época, a Inquisição concluiu que era exatemente isso que o mercado queria --mais especificamente o mercado do Campo de Fiori, em Roma, onde Bruno foi queimado vivo numa fogueira em 17 de fevereiro de 1600. Desde então, a vingança: cada nova pesquisa parece confirmar a linha de pensamento do italiano.

Reprodução
Desenho mostra a aparência de Giordano Bruno quando jovem
Desenho mostra a aparência de Giordano Bruno quando jovem
A última --e definitiva, em matéria de sóis e seus planetas-- veio do Telescópio Espacial Spitzer, satélite da Nasa especializado em "enxergar" as coisas em infravermelho (luz invisível ao olhos humanos que viria antes do vermelho no arco-íris, caso fosse possível vê-la). Uma série de observações demonstrou que até mesmo estrelas "abortadas", as chamadas anãs marrons, têm lá sua família planetária. É uma descoberta surpreendente, que obrigará a certas reformas em nossos modelos correntes de como surgem esses objetos ao redor de outras estrelas.

Grosso modo, estrelas são imensas bolas compostas basicamente de hidrogênio. Elas se formam em nuvens gasosas espalhadas pelo espaço que entram em colapso gravitacional, concentrando cada vez mais a matéria. Chega um dado momento em que a concentração é tão grande que os átomos de hidrogênio no núcleo começam a grudar uns nos outros. O processo, chamado de fusão nuclear, libera grande quantidade de energia e faz com que as estrelas brilhem.

T. Pyle/JPL/Nasa
Ilustração de cristais microscópicos em disco de poeira ao redor de anã marrom
Ilustração de cristais microscópicos em disco de poeira ao redor de anã marrom
Nessa história, as anãs marrons são, como diria Silvio Santos, as grandes perdedoras --aqueles astros que não conseguiram engordar o suficiente para chegar lá. Até que começaram a reunir quantidade considerável de gás numa nebulosa, mas ficaram sem matéria para concluir o serviço. Resultado: tornaram-se estrelas "abortadas", que não atingiram o ponto em que podem fundir hidrogênio e brilhar.

Planetas, por sua vez, surgem ao redor de estrelas a partir de discos de gás e poeira reunidos em torno delas. Mas os astrônomos não esperavam que as anãs marrons, com seu porte modesto (elas têm entre 13 e 75 vezes a massa de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar; o Sol, em comparação, tem mil vezes a massa de Júpiter), conseguissem agregar matéria do mesmo jeito que as estrelas de verdade para construir sua família.

Ledo engano. O grupo de Dániel Apai, da Universidade do Arizona e do Instituto de Astrobiologia da Nasa, acabou de usar o Spitzer para observar seis anãs marrons muito jovens, com 1 milhão a 3 milhões de anos, localizadas a uns 520 anos-luz de distância, na constelação do Camaleão. Cinco delas apresentaram discos formadores de planetas em fase avançada de evolução. Moral da história: até mesmo os astros mais patéticos, como as anãs marrons, merecem ter seus planetas.

Segundo as estimativas do grupo, que publicou seus resultados on-line na última edição da revista científica americana "Science", esses discos poderiam dar origem até a planetas relativamente grandes, com tamanho comparável ao de Netuno --bem maiores que a Terra.

Até aí, va bene, como diria Giordano. Em parte, o filósofo italiano tinha mesmo razão, e todos os sóis, até aqueles que nem chegam a brilhar, devem ter seus planetas. Mas e quanto às possibilidades de que essas estrelas tenham mundos habitados? Nesse caso, Bruno ainda está à frente da ciência. Ninguém sabe se os planetas das anãs marrons --ou os de qualquer outro tipo de estrela, já que o assunto é esse-- podem conter vida.

É provável que tudo dependa da arquitetura do sistema planetário em questão --ele deve permitir a existência de um planeta na distância certa para não ser nem muito quente, nem muito frio, numa órbita estável e duradoura, como a Terra. De início, os astrônomos pensavam que todos os sistemas teriam essa qualidade, mas a descoberta dos primeiros planetas fora do Sistema Solar jogou um balde de água fria em suas cabeças.

"Antes de 1995, a maioria dos teóricos estava convencida de que a arquitetura do Sistema Solar --órbitas circulares concêntricas com pequenos planetas rochosos perto da estrela e planetas gigantes gasosos mais distantes-- era a única possível. Hoje sabemos que isso dificilmente poderia estar mais longe da verdade", disse-me o americano Paul Butler, astrônomo da Instituição Carnegie de Washington, quando o entrevistei para meu livro "Rumo ao Infinito". "Na realidade, órbitas circulares concêntricas representam o caso mínimo de entropia, o mais organizado. A maioria dos sistemas planetários não vai ser assim, já que qualquer evento que perturbe essa ordem levará a sistemas caóticos e então excêntricos. A grande questão é: que fração de planetas estará numa arquitetura igual à do Sistema Solar? Meu palpite é que esse valor será menor que 10%."

Será que desta vez Giordano Bruno foi longe demais? O assunto ainda pega fogo nas rodas astronômicas.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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