Pensata

Salvador Nogueira

03/11/2005

A volta dos que não foram?

Tem um livro que estou louco para ler. Acabou de chegar às livrarias norte-americanas, mas bem antes disso já havia sido "vendido" para virar filme, pelas mãos da Warner Bros e do ator e diretor veterano Clint Eastwood. "First Man" narra a trajetória de um personagem histórico do mesmo calibre de um Cristóvão Colombo ou um Fernão de Magalhães. Seu nome é Neil Armstrong.

Nasa
Neil Armstrong, em 20 de julho de 1969, no módulo lunar Eagle
Neil Armstrong, em 20 de julho de 1969, no módulo lunar Eagle
Esse sujeito provavelmente seria um completo desconhecido, não fosse tão flagrante o papel dele na história humana. Um piloto militar retraído e avesso à fama que se tornou o primeiro homem a caminhar sobre a Lua. Ao descer do módulo lunar Eagle, na missão Apollo-11, em 20 de julho de 1969, Armstrong personificou a humanidade inteira, na busca de seu lugar no cosmos.

Sua volta à Terra, claro, foi triunfal. A despeito disso, o astronauta fez de tudo para ficar longe da voracidade da mídia. Suas aparições públicas sempre foram raras, suas poucas declarações à imprensa costumam ser medidas e discretas. Estar na Lua definitivamente não tirou dele a mais profunda das verdades: a de que ele ainda era um ser humano como qualquer outro.

Não é surpreendente que tenha sido uma tarefa hercúlea para o historiador e escritor James Hansen convencer Armstrong a colaborar com o livro. O ex-astronauta decidiu abraçar o projeto somente depois que descobriu o trabalho de seu potencial biógrafo sobre a vida de outras personalidades do mundo aeroespacial --sempre com um foco maior na ciência da qual fizeram parte, em vez de nas minúcias de sua vida pessoal.

Por estar no lugar certo na hora certa, Armstrong foi o líder de um pequeno grupo de privilegiados. Entre 1969 e 1972, os Estados Unidos enviaram doze homens à superfície lunar. Depois disso, com a corrida espacial vencida e a então União Soviética superada, ninguém mais voltou a pisar sobre o satélite natural da Terra. Isso causou algumas suspeitas. Hoje, quase quatro décadas depois, a principal pergunta que muitas pessoas querem ver respondida sobre Neil Armstrong é: ele realmente esteve na Lua?

A "teoria" de que os pousos lunares foram fraudados pela Nasa e na verdade nunca aconteceram se tornou uma das lendas urbanas mais populares do século 20. Ao longo das últimas décadas, toneladas de "evidências" foram levantadas pelos partidários dessa idéia. Dúzias de sites de internet e documentários de TV dão voz a esse movimento, alimentando a hipótese de que tudo não tenha passado de uma montagem feita em estúdio para ludibriar o mundo inteiro e demonstrar a suposta supremacia espacial norte-americana.

Nasa
Armstrong fotografa Aldrin, e sombras parecem apontar em direções diferentes
Armstrong fotografa Aldrin, e sombras parecem apontar em direções diferentes
Segundo esses "estudiosos", as evidências que a Nasa tem de que enviou gente à Lua se resumem "apenas" a alguns vídeos, várias fotografias e quilos de rochas que supostamente teriam sido trazidas de lá. Bem, o que mais eles esperavam, um autógrafo de são Jorge? Honestamente, não consigo pensar em outras provas que a agência espacial americana pudesse ter obtido. Mas, para os partidários da teoria da conspiração, não só os ianques forjaram essas peças, como fizeram um serviço porco.

Fala-se, por exemplo, de que as regiões de sombra de cada fotografia deveriam ser completamente negras, em razão de não haver atmosfera na Lua para dispersar a luz. Sinal da fraude: em várias fotos é possível ver coisas com clareza sob a sombra, como a bandeira americana pintada na base do módulo lunar usado para o pouso.

Isso é uma grande bobagem. Embora a Lua careça de uma atmosfera, a luz refletida pelos astronautas, pelo módulo lunar e pelo solo pode iluminar as sombras, permitindo a observação dos detalhes.

Ainda no quesito "luz", os defensores da tese de fraude apontam que as fotografias tiradas na Lua mostram vários objetos com sombras em direções diferentes, o que indicaria a presença de múltiplas fontes de iluminação. No caso de uma real visita à Lua, eles argumentam, só haveria uma fonte de luz, o Sol. E eles estão certos: só há uma fonte de luz nas imagens da Nasa. Caso houvesse outras, elas fariam com que os objetos projetassem múltiplas sombras, o que não acontece. As diferenças na direção e mesmo no tamanho das sombras na verdade têm a ver com perspectiva e com irregularidades no solo lunar, e não é difícil observar exatamente os mesmos efeitos tirando fotos na Terra.

Nasa
Imagem de vídeo mostra astronautas "tremulando" bandeira americana
Imagem de vídeo mostra astronautas "tremulando" bandeira americana
Outro argumento clássico é o de que não se vêem estrelas nas fotos. Claro, pois as máquinas fotográficas estavam ajustadas para fotografar cenas sob a "luz do dia" lunar. Nessa configuração, o tempo de exposição do filme é muito curto, e as estrelas não apresentam brilho suficiente para aparecer na foto.

E os desconfiados não desistem: como poderia a bandeira americana tremular, se não existe atmosfera (portanto vento) na Lua? De novo eles estão certos, não poderia. E não tremula. Pelo menos não em razão de vento. Claro, os astronautas tentando afixar o mastro ao solo, girando-o, imprimem certo movimento à bandeira, que vibra um pouco. Mas não há nenhum sinal de que algum vento estivesse envolvido no fenômeno. Aliás, se houvesse um vento ali, certamente veríamos mais que o tremular da bandeira; a fina poeira do "cenário" também voaria por todo lado.

Claro, ainda há muitas outras "anomalias" apresentadas pelos "estudiosos" da fraude lunar. Como os filmes fotográficos poderiam ter sido preservados dos extremos de temperatura na Lua? Como os astronautas sobreviveriam à passagem pelos cinturões de Van Allen, anéis de intensa radiação que circundam a Terra? Por que algumas das cruzes de marcação das fotos parecem às vezes estar atrás dos objetos, não à frente? Como não há um buraco sob o módulo lunar, escavado pelo propulsor-foguete da nave durante o pouso? Como as pegadas dos astronautas ficam tão delineadas no solo, apesar da ausência de umidade no solo lunar? A lista é longa. Os cientistas têm respostas precisas e triviais para todas essas perguntas, mas os "estudiosos" preferem acreditar num complô mundial para encobrir a maior farsa de todos os tempos.

Aliás, seria mesmo preciso cooptar milhares de cientistas por todo o globo para que eles dissessem que rochas comuns, ou mesmo meteoritos, na verdade possuíam todas as assinaturas de um pedregulho que foi trazido da Lua e que não passou pelos rigores de uma reentrada atmosférica violenta. As amostras lunares já passaram pelo escrutínio de cientistas de muitos países e ninguém jamais disse ter desconfiado de nada. Não é à toa que as rochas são as menos "lembradas" pelos teóricos da conspiração.

Nasa
Edwin Buzz Aldrin, o segundo homem na Lua, posa para foto
Edwin Buzz Aldrin, o segundo homem na Lua, posa para foto
Cansada de ouvir essa papagaiada, a Nasa chegou a escalar um famoso historiador aeroespacial, James Oberg, para que ele escrevesse um livro refutando a "fraude lunar". Mas, em 2002, a agência desistiu de publicar a obra, com medo de que o trabalho acabasse por legitimar a desconfiança, em vez de dissipá-la. É mais ou menos o incômodo que muitos biólogos sentem ao aceitar discutir a evolução das espécies pela seleção natural com os partidários do criacionismo religioso. Fé, diferentemente de ciência, não se discute.

A rigor, eu poderia seguir o mesmo raciocínio da Nasa e simplesmente ignorar o tema. Só não o faço por uma razão: não são só os lunáticos que acreditam na fraude lunar. Muitas vezes, com seus argumentos distorcidos, eles conseguem convencer pessoas razoáveis e dotadas de senso crítico de que há razão para duvidar dos sucessos do Projeto Apollo.

Depois de escrever sobre a possível construção de um radiotelescópio na Lua, recebi vários e-mails apontando "evidências" da fraude lunar e perguntando se elas tinham alguma base. Então, aqui vai minha resposta: não têm. Mas não posso me contentar apenas em refutá-las. Para mim, a melhor defesa contra esse tipo de coisa é o ataque. Apresentarei eu algumas evidências, e os partidários da hipótese de fraude que tratem de explicá-las.

1. Para onde foram os foguetes Saturn V, lançados ao espaço diante de milhares de pessoas, da Flórida, se não houve nenhuma missão à Lua? Vale lembrar que, se eles tivessem lançado as naves apenas até a órbita da Terra (como defendem alguns dos teóricos da conspiração), teria sido fácil avistá-los, o que não ocorreu.

2. Como foi possível que rádios amadores em todo o mundo captassem transmissões vindas da direção da Lua, com as vozes dos astronautas e tudo mais?

3. O que os soviéticos observaram e monitoraram durante todo o caminho na direção da Lua, transmitindo ondas de rádio regularmente, se não foram as naves Apollo?

4. Por que o presidente Richard Nixon já tinha até um discurso pronto em caso das mortes de Neil Armstrong e Edwin Aldrin durante a tentativa de pouso lunar, se os dois astronautas jamais correram os riscos de uma viagem até a Lua?

5. O que está lá instalado nos sítios de pouso de várias das missões Apollo refletindo raios laser disparados da Terra, se nenhum astronauta esteve lá para colocar nada? Esses espelhos são usados até hoje em conjunto com lasers terrestres para medir com precisão a distância Terra-Lua, a partir do tempo que leva para um raio luminoso ir até lá e voltar.

6. Por que os americanos fizeram questão de "fingir" um acidente quase fatal para três de seus astronautas com a Apollo-13, se desde a missão 11 já haviam "filmado" pousos lunares bem-sucedidos?

7. Por que os soviéticos não se preocuparam em enviar uma sonda até a Lua para fotografar os locais de pouso das missões Apollo e comprovar a fraude, se havia tantas razões para suspeitar de uma farsa desse porte?

Sete é um número bom, combina com o clássico "Jogo dos Sete Erros". Claro, ao escrever as perguntas, já fui pensando em algumas respostas possíveis. As espaçonaves lançadas com o Saturn V seriam tiradas de órbita quase imediatamente, para não serem rastreadas por ninguém girando ao redor da Terra. Para simular a "volta" dos astronautas, um novo lançamento seria feito às escondidas, pouco tempo antes da reentrada programada no oceano Pacífico. Os espelhos na Lua poderiam ter sido colocados por missões não-tripuladas; os soviéticos chegaram a instalar um sistema desses, mas de qualidade inferior, com uma de suas sondas Luna. As naves poderiam ter sido enviadas sem tripulação, com mensagens gravadas que seriam transmitidas para a Terra e "provariam" que os astronautas estavam nas imediações lunares. O discurso inutilizado de Nixon seria apresentado mais tarde como evidência de que os pousos foram reais. O acidente da Apollo-13 também serviu para dar mais "realismo" à fraude, ou foi a primeira e única tentativa real de enviar gente à Lua. Os cientistas soviéticos foram tão soberbamente enganados pelas evidências apresentadas pela Nasa que acharam que seria vergonhoso enviar uma sonda até lá para verificar os fatos. E por aí vai. O exercício só demonstra que uma pessoa realmente determinada a acreditar numa besteira continuará encontrando explicações que justifiquem sua crença. Mesmo que isso contradiga os fatos e mesmo o bom senso.

Nasa
Astronautas fotografam Terra, distante, sobre o módulo lunar
Astronautas fotografam Terra, distante, sobre o módulo lunar
E a coisa só tende a piorar. A sonda européia Smart-1, atualmente em órbita ao redor da Lua, tem uma câmera com resolução suficiente para visualizar equipamentos deixados pelos astronautas da Apollo na superfície. Ainda não houve oportunidade para passar por um dos sítios de pouso a uma distância razoável que permitisse a visualização (a espaçonave está numa órbita oval, então ora passa mais perto da superfície lunar, ora mais longe, conforme completa suas voltas ao redor do satélite). Mas talvez tenhamos em breve uma vista aérea do local das alunissagens tripuladas. China e Índia estão preparando suas sondas lunares para lançamentos em dois ou três anos. O Japão tem duas missões lunares na agenda, uma delas com capacidade de visualizar os traços das Apollos. E a Nasa também deve enviar em coisa de dois anos uma nave até a órbita lunar para fazer reconhecimento, em preparação para a volta tripulada, marcada para 2018. Ou seja, em alguns anos teremos de acreditar que todas as nações envolvidas na exploração espacial, quatro décadas depois, seguem mancomunadas para sustentar a idéia de que, nos anos 1960 e 1970, os americanos fizeram o mundo inteiro de paspalho, fingindo ter enviado 12 pessoas à Lua.

Claro, também há uma alternativa. É mais fácil aceitar que o homem de fato foi à Lua em 1969. O sempre humilde Neil Armstrong agradece a deferência.
Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.

E-mail: salvadornogueira@uol.com.br

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