Pensata

Sylvia Colombo

29/09/2006

A dor dos outros

O inglês Ken Loach é um cineasta fantástico. Mas, quando vejo seus filmes, sempre fico com a sensação de que há algo de vampiresco naquilo que ele faz, ao apropriar-se da história de determinado grupo na luta contra um determinado tipo de opressão. Desse embate, o diretor (e seu fiel roteirista, Paul Laverty) suga inspiração e elementos para, não raro, fazer um filme genial. "The Wind that Shakes the Barley", seu mais recente trabalho, exibido no Festival de Cinema do Rio na semana passada, não foge à regra.

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Guerrilhas locais enfrentam as tropas de ocupação britânicas em filme com Ken Loach
Guerrilhas locais enfrentam as tropas de ocupação britânicas em filme com Ken Loach
Trata-se de uma história duríssima e violenta, que se passa na Irlanda dos anos 20. Guerrilhas locais estão enfrentando as tropas de ocupação britânicas na época do acordo firmado entre o líder Michael Collins e o governo inglês, que selou a divisão das Irlandas e a incorporação da Irlanda do Norte ao Reino Unido. O filme, merecidamente, venceu a palma de Ouro do último Festival de Cinema de Cannes, com Loach em boa forma e a atuação brilhante de Cillian Murphy (de "Extermínio", Danny Boyle). Nele, somos apresentados a dois irmãos. O valentão e entusiasta da luta armada Teddy (Padraic Delaney), respeitado líder guerrilheiro local, e seu irmão, Damian, médico delicado e idealista, que está às vésperas de mudar de vida, rumando para Londres, onde continuaria seus estudos e se empregaria num hospital da capital.

Só que uma seqüência de atrocidades passa diante de seus olhos e o faz mudar de idéia: a morte brutal de um rapaz por soldados ingleses e o espancamento de um maquinista que se recusa a deixar uma tropa subir num trem. Damian, então, larga as malas e resolve acompanhar o irmão.

Para o bem do cinema, Loach não apresenta uma leitura maniqueísta ou ingênua do conflito, e a crueldade e a barbárie estão presentes tanto no lado inglês quanto no irlandês. Ainda assim, o diretor, evidentemente, acaba deixando clara sua preferência pelos revoltosos.

O foco dramático de "The Wind...", entretanto, não reside aí, mas no momento seguinte à saída dos ingleses do território irlandês. É então que emergem os conflitos entre os grupos irlandeses antes unidos contra o inimigo comum. Enquanto Teddy fica do lado dos chamados "legalistas", ou seja, os que herdam o aparato repressivo inglês para "manter a ordem" no país, Damian se junta aos que não aceitam a divisão das Irlandas e decidem seguir na atividade guerrilheira.

De algum modo, o filme evoca processo semelhante retratado por Loach em seu melhor filme, "Terra e Liberdade" (1995), que contava uma passagem da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) a partir da divisão no coração das "esquerdas" envolvidas na luta contra o franquismo, e não do simples embate entre republicanos e franquistas.

Fica claro que Loach está mandando sinais aos dias de hoje. A crueldade e a violência das cenas de ataques guerrilheiros, de batalha e tortura, os conflitos éticos e emocionais, e os questionamentos sobre o que acontece quando um exército de ocupação deixa um território conflagrado imediatamente apontam para os dias de hoje, à guerra ao Terror e à do Iraque. Como se vê, a depender da história, Loach terá emprego garantido por muitos
anos.

MAIS FESTRIO

Todo ano é a mesma coisa. Qual cidade tem o melhor festival de cinema do Brasil, São Paulo ou Rio? O carioca deste ano ainda está na metade, enquanto o paulistano só começa em outubro. Mas, pelo pouco que presenciei, no fim de semana passado, o do Rio tem, ao menos, uma vibração bacana e diferente da daqui. Por exemplo? Sábado de madrugada, sessão do novo (e bem mediano) filme de Brian de Palma ("A Dália Negra"), no cine Odeon, centrão da cidade: público animado e na rua, celulares na mão, estudantes de bolsa à tiracolo e gente se divertindo nos cafés ao redor. Nem parecia que estávamos no coração de uma das cidades mais violentas do país.

CORDEL DO POP ENCANTADO

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"Transfiguração", o terceiro álbum do Cordel, persegue letras apocalíptico/poéticas
"Transfiguração", o terceiro álbum do Cordel, persegue letras apocalíptico/poéticas
Quando assisti ao Cordel do Fogo Encantado pela primeira vez, em 2000, no Blen Blen (do meu amigo sumidíssimo Guga Stroeter), achei que estava vendo um troço muito original na música popular brasileira. Uma renovação e um vigor juvenil que, curiosamente, surgiam de uma inspiração primitiva, arcaica, enraizada na nascente da cultura popular. Canções que falavam das forças da natureza, da impotência do homem diante do trovão e do inexorável fim de tudo. Um som que parecia emanar do fundo da terra seca do sertão e que tinha seu clímax em momentos teatrais e catárticos.

O impacto foi tanto que fui a vários shows seguidos e praticamente decorei o repertório. Quando veio o segundo disco, "O Palhaço do Circo Sem Futuro", entretanto, achei que o ânimo tinha se arrefecido e a criatividade dos rapazes, se diluído. Mas, hoje, fiquei feliz depois de ouvir "Transfiguração", o terceiro álbum do Cordel.

As mesmas letras apocalíptico/poéticas, percussão e cordas vibrantes, e mais variedade de recursos. Houve gente que achou que os pernambucanos andam fazendo concessões ao pop. Acho exagero, o álbum é um legítimo Cordel, teatral, exuberante, dramático e carismático. Tem o defeito de exagerar na metralhadora citatória, que revela certo entusiasmo ingênuo (são evocados Graciliano Ramos, Italo Calvino, Ana Cristina Cesar, Euclydes da Cunha, Brecht e Nietzsche). Ainda assim, o que fazem é melhor do que muito do que se produz na MPB dos nossos dias, e isso vale de Los Hermanos a Caetano Veloso, passando por tantos outros. Longa vida aos artistas da pequena Arcoverde, Pernambuco.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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