Pensata

Sylvia Colombo

13/10/2006

Renato

"Até bem pouco tempo atrás/
poderíamos mudar o mundo,/
quem roubou nossa coragem?"

("Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto")

"Nos perderemos entre monstros/
Da nossa própria criação/
Serão noites inteiras/
Talvez por medo da escuridão/
Ficaremos acordados"

("Será")

"Disseste que se tua voz tivesse força igual/
À imensa dor que sentes/
Teu grito acordaria/
Não só a tua casa/
Mas a vizinhança inteira"

("Há Tempos")

"Viver é foda, morrer é difícil"
("Vamos Fazer um Filme")

Renato Russo morreu há dez anos.

Se naquele 11 de outubro de 1996 vimos cair o herói e porta-voz de toda uma geração, hoje a obra desse que, certamente, será conhecido no futuro como um dos maiores poetas pop da música brasileira, está ganhando novo significado.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
O cantor Renato Russo, que morreu há dez anos, no dia 11 de outubro de 1996
O cantor Renato Russo, que morreu há dez anos, no dia 11 de outubro de 1996
O misterioso sucesso que as músicas de sua banda, a Legião Urbana, ainda faz entre adolescentes de nossos dias e a maneira como o cantor se consolidou como um ícone para gente de todas as idades mostra que sua mensagem, de alguma forma, atravessou os tempos, renovou-se e acabou sendo novamente absorvida. Potencializada, é claro, pelo fato de o cantor ter morrido jovem, virando uma espécie de James Dean tupiniquim.

Na segunda metade dos anos 80 --época em que a Legião estourou-- as letras de Russo conversavam diretamente com os sentimentos dos chamados "filhos da ditadura", os então teens que cresciam no clima de pós-Diretas-Já. Elas falavam das injustiças do "sistema" e da dificuldade de ser "puro" em meio à "hipocrisia" dos costumes da sociedade.

Hoje, essas mesmas canções de estrofes imensas --e que, para quem tem lá pelos 30 parecem ter vindo memorizadas no nosso cérebro desde o berço-- também vestem direitinho os novos tempos e tocam em cheio o coração de meninos e meninas. Se antes as letras refletiam o dia-a-dia dos jovens tendo o processo de redemocratização e a abertura do país como pano de fundo, agora elas se prestam também para expressar revolta tanto com relação a escândalos de corrupção como à Guerra do Iraque. E, ainda, se antes voltavam-se contra os preconceitos mais latentes daquela sociedade (com relação a homossexualidade, por exemplo), hoje elas desafiam questões mais amplas, como o racismo ou a falta de compaixão social.

Folha Imagem
Canções do Legião Urbana ainda fazem sucesso entre adolescentes de nossos dias
Canções do Legião Urbana ainda fazem sucesso entre adolescentes de nossos dias
Renato Manfredini Júnior, nascido em 27 de março de 1960, no Rio de Janeiro, e morto aos 36, em decorrência da Aids, poderia ter sido qualquer coisa. Homem erudito, lia muito, falava inglês fluentemente e escutava todo tipo de música. Poderia ter se tornado escritor, poeta, acadêmico ou compositor clássico. Mas escolheu a música e, assim, elevou a Legião Urbana à mesma categoria dos Mutantes no que diz respeito à relevância dentro do cenário nacional. Não que a Legião tenha sido inovadora ou notável como banda de rock --tendo até empobrecido seu som ao longo do tempo, de um furioso começo punk para um domesticado final "acústico". Ainda, do ponto de vista pessoal, a história deverá confirmar que Renato foi mais significativo do que Cazuza (cuja trajetória foi também trágica, mas que se tornou um fenômeno mais limitado ao Rio de Janeiro) e disputará palmo a palmo o posto de grande ícone pop com Raul Seixas.

Ele estava longe de ser um galã. Um pouco gordinho, óculos quadrados e fora de moda, as blusas largas a la Morrissey (de quem também emprestou alguns trejeitos) e seriedade sombria a la Ian Curtis (o vocalista suicida do Joy Division), Renato interagia com o público nem sempre de maneira amistosa. Reagia quando o chamavam de "viado" ou "bicha", fazia manha, sentava-se no palco e recusava-se a cantar. Seu ego era gigante. Mas sua capacidade de ver a alma humana, também.

Não houve sentimento adolescente ou existencial que não fosse abordado em suas letras. A solidão ("já estou cheio de me sentir vazio, meu corpo é quente, estou sentindo frio"), o medo da rejeição ("quero ter alguém com quem conversar, alguém que depois não use o que eu disse contra mim"), o amor não correspondido ("eu quis o perigo e até sangrei sozinho"), a revolta contra os pais ("eu moro na rua, não tenho ninguém, eu moro em qualquer lugar"), a nostalgia da infância ("quero colo, vou fugir de casa, posso dormir aqui com vocês?"), a importância dos amigos ("o sistema é mau, mas minha turma é legal"), o medo do futuro ("quem é que vai nos proteger?") ou da morte ("e o salva-vidas não está lá porque não vemos"), o inconformismo com relação ao "sistema" ("vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações, o meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões") e, por fim, o imenso desamparo que dividia com todos nós ("só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção").
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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