Pensata

Sylvia Colombo

20/10/2006

Chico e Caetano

"Soñé que el fuego helaba/
Soñé que la nieve ardía/
Y por soñar lo imposible/
Soñé que tu me querías
(anônimo, citado por Chico Buarque em "Outros Sonhos", do álbum "Carioca")

"Estou-me a vir/
Estou-me a vir/
E tu como é que te tens por dentro?/
Porquê não te vens também?"
(trecho de "Porquê", faixa de "Cê", grafado assim mesmo, com circunflexo e
tudo junto, à moda portuguesa
)

Há semanas venho me sentindo tentada a escrever sobre Chico e Caetano, por conta dos novos discos dessas duas lendas da nossa MPB. Só que, com 12 anos de jornalismo cultural nas costas, sei que falar desses caras pode causar fúria ou reações juvenis de críticos, editores e acadêmicos de uma geração anterior à minha, especialmente envolvida e tocada, tanto do ponto-de-vista emocional como político, pela obra de ambos.

João Wainer/Folha Imagem
Chico Buarque, 62, iniciou turnê do CD "Carioca" em São Paulo, com shows lotados
Chico Buarque, 62, iniciou turnê do CD "Carioca" em São Paulo, com shows lotados
Ou seja, a possibilidade de ferir egos, crenças enraizadas e convicções sólidas é grande e eu poderia muito bem evitar me jogar nesse espinheiro. Mas ter visto o show de Chico no último sábado, no fim de semana de encerramento da temporada de "Carioca" em São Paulo, e, um pouco por desleixo, só agora ter escutado com atenção o mais recente disco de Caetano, "Cê", não resisti e resolvi comentar o que vi e ouvi. E tento fazer isso a partir do que imagino serem as indagações comuns daqueles que ainda consomem os CDs e espetáculos desses dois pilares da nossa música:

1) Quem está envelhecendo melhor, Chico, 62, ou Caetano, 64?
2) Qual deles será mais importante aos olhos da história?
3) Os discos novos são meio chatos mesmo ou somos nós que precisamos ouvi-los várias vezes, pois ele são "difíceis" (afinal, gênios maduros fazem poucas concessões)?
e, por fim:
4) Será que nos shows vindouros eles vão tocar apenas as músicas dos novos álbuns ou a gente vai poder ouvir também "as antigas", as históricas, das quais realmente gostamos?

A primeira questão é apenas uma atualização daquela com que os brasileiros se debatem há décadas: Você prefere Chico ou Caetano? (na linha da outra: "Beatles ou Stones?"). De minha parte, já adianto, sempre fui, e ainda sou, mais Caetano.

Até por conta disso, fui assistir ao show de Chico com o pé atrás. Não sou chicomaníaca; e, ao contrário de 99% das mulheres deste país, não me derreto pelos seus olhos azuis ou por sua aparência de menino frágil. Além disso, tinha ouvido críticos e amigos usarem mil eufemismos para descrever o concerto, todos na linha "o show é homogêneo", "linear, sem altos e baixos", "todo encadeado" ou "é para ser lido como um livro". Falemos claro, colegas,o show é arrastado e meio "boring", é isso? Ninguém se atreve a confessar mas, sim, é exatamente isso.

Ana Carolina Fernandes/FI
Caetano Veloso, 64, diz que buscou inspiração no punk para disco "Cê"
Caetano Veloso, 64, diz que buscou inspiração no punk para disco "Cê"
Assim, eu estava preparada até para possíveis cochiladas durante o espetáculo. Mas não foi o que aconteceu. "Carioca", disco anêmico, ganha alguma vida no palco. Canções que passaram meio batidas numa primeira audição parecem um pouco (bem pouco) mais vibrantes. Arranjos, luz, e a solenidade de Chico ao apresentá-las quase como se estivesse celebrando um ritual lhes imprimiram sangue e certa força. E aí, fui obrigada a concordar com a maioria. Chico é grande. E, se tem se arriscado pouco, se prefere parecer, hoje, um artista datado e um tanto nostálgico, é porque é isso mesmo que ele quer fazer. E quem não se sentir confortável, que deixe a sala.

Chico tem reclamado que críticos musicais só se fixam nas letras, sem analisar a música propriamente dita. Talvez por isso, ao vivo, o sofisticado passeio que faz entre os gêneros contidos em "Carioca", o disco, saltem ao primeiro plano. Há samba (por supuesto), um pouco de tango, rap, sonoridades nordestinas e um ar de "Dorival passou por aqui". Se não está preocupado, como ele mesmo diz, em compor um repertório "orecciabile" (algo como "orelhável", em italiano), por outro dá uma verdadeira aula para outros ouvidos, os curiosos e que gostam de música. Não é pouco.

Já Caetano é outra história. A primeira frase da primeira faixa ("Outro") de "Cê" já resume porque gosto dele: "você não vai me reconhecer quando eu passar por você". A capacidade de se transformar, de perverter o que já fez, de absorver o que de novo se produz aqui e ali e de sempre surpreender fazem dele o maior artista brasileiro vivo. "Cê" é um álbum punk tropicalista, seco e direto. As letras são pequenos poemas, cheios de belas imagens ("nada serve de chão/ onde caiam minhas lágrimas") e de outros "caetanismos" ("eu sou você e os meus rivais/ sou só").

Entretanto, "Cê" não se coloca, nem de longe, entre os melhores discos de Caetano. O excesso de testosterona e referências ao macho diante do sexo também cansam um pouco. Não parece nem um pouco transgressivo nos dias de hoje e acaba soando mais como lamúrias de homem "maduro". A faixa mais legal é "Não me Arrependo", meio bobdyliana e forte ao retratar --talvez de forma autobiográfica-- o fim de um romance ("vejo essas novas pessoas que nós engendramos em nós/ nada nem que a gente morra,/ desmente o que agora chega a minha voz"). O sonzinho acariocado de "Musa Híbrida" celebra um dos nossos "patrimônios": a mestiçagem. O outro, o do "homem cordial", está em "O Herói", pra todo mundo ouvir e refletir a respeito antes do próximo dia 29 de outubro.

Ainda assim, tomara que ele siga cantando também "as velhas" nos próximos shows.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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