Pensata

Sylvia Colombo

10/11/2006

Garotos e ditaduras

Não têm faltado loas a "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", filme que conta a história de um garoto que tem de conviver com a situação de ter sido deixado pelos pais, envolvidos em atividades políticas clandestinas, durante a ditadura militar no Brasil, às vésperas da Copa de 1970. "Finalmente fizemos um filme argentino", anda dizendo o senso comum da crítica nacional (o que, a essa altura, não deixa de ser irônico). Mas a verdade é que o filme de Cao Hamburger não só chega atrasado com relação a outras produções que tratam de ditaduras latino-americanas aos olhos da infância, mas o faz de modo convencional e pouco verossímil.

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"Kamchatka", filme do argentino Marcelo Piñeyro, tem Ricardo Darín no elenco
"Kamchatka", filme do argentino Marcelo Piñeyro, tem Ricardo Darín no elenco
Muito melhores que este são o chileno "Machuca" (2004), de Andrés Wood, que se passa em 1973, ano do golpe militar que dá início à ditadura Pinochet, e o argentino "Kamchatka" (2002), de Marcelo Piñeyro, que se passa em 1976, quando começa a ditadura argentina, a mais sangrenta da América Latina. De ambos, "O Ano" toma grandes doses de "inspiração", para usar um eufemismo. A única coisa que talvez os iguale positivamente é o carisma e a entrega ao papel dos meninos Michel Joelsas (o personagem Mauro de "O Ano"), Matías del Pozo (o Harry de "Kamchatka") Matías Quer e Ariel Mateluna (Gonzalo e Pedro Machuca, respectivamente, em "Machuca")

"Nos vemos em Kamchatka", promete o pai interpretado por Ricardo Darín ao filho, no final do filme argentino, quando dele se despede, na estrada, prestes a fugir dos repressores. Ele sabe que dificilmente verá novamente o garoto, e usa a imagem de um lugar distante do tabuleiro de TEG (um jogo tipo War), que ambos costumavam jogar. Kamchatka, ilha gelada na Rússia, ficava no cantinho do tabuleiro, e era um ponto estratégico para ambos, a partir de onde se podia atacar os EUA via Alaska, surpreendendo o potente adversário. "'Kamchatka' é o lugar onde se resiste" é a mensagem em código que o homem sabe que o filho vai decifrar no futuro, quando compreender porque seus pais desapareceram.

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atías Quer, Manuela Martelli e Ariel Mateluna em cena do filme "Machuca", de Andrés Wood
atías Quer, Manuela Martelli e Ariel Mateluna em cena do filme "Machuca", de Andrés Wood
No começo de "O Ano", o pai de Mauro lhe deixa uma mensagem semelhante, envolvida na promessa de que estariam juntos, de alguma forma, quando a seleção brasileira entrasse em campo. "Nos vemos antes da Copa", diz ele em sua despedida, também ciente de que esse retorno poderia nunca acontecer. Aqui, entretanto, em vez de um jogo de War, o que une pai e filho é o futebol, materializado numa mesa de botão e na imagem solitária do goleiro, peça preferida de ambos. O guarda-metas é o diferente do time, diz o pai, o mais solitário e o que não pode falhar.

Tanto em "Kamchatka" como em "O Ano", os garotos são deixados com seus avós. No filme argentino, porém, a passagem é filmada de forma artística e delicada (fora que o avô é nada menos que o excelente Hector Alterio). No brasileiro, numa cena quase amadora, a criança é deixada na porta da casa do avô (Paulo Autran, que por sua vez não tem chance de brilhar, pois morre assim que aparece), sem que os pais sequer entrem no edifício para entregá-lo pessoalmente. A passagem simplesmente não cola, mas, é claro, se eles entrassem na casa, não haveria filme. Ou seja, uma "licença poética", para que a história possa continuar.

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"O Ano Que Meus Pais Saíram de Férias", premiado na 30ª Mostra de Cinema de SP
"O Ano Que Meus Pais Saíram de Férias", premiado na 30ª Mostra de Cinema de SP
Com "Machuca", de longe o melhor dos três filmes, "O Ano" comparte a maneira como o garotos Machuca, Gonzalo e Mauro têm de se adaptar a novos colegas, que representam facções das respectivas sociedades, que estão, neste momento, em pleno conflito. Mas enquanto "Machuca" se desenvolve num colégio de elite caprichosamente caracterizado, "O Ano" acontece num edifício do Bom Retiro no qual vive uma comunidade judaica retratada de modo estereotipado, com personagens tão caricatos que parecem saídos de um filme de Ugo Giorgetti.

Os momentos em que apenas as crianças estão em cena, com a graciosa atuação da garota Hanna (Daniela Piepszyk) contam a favor de "O Ano", assim como a envolvente ambientação das ruas de São Paulo durante a Copa do tri, na qual dificilmente deixaremos de nos emocionar. Mas aí é apelar para o ponto fraco de todos nós, brasileiros, e para nosso principal produto de exportação. O recurso vale, mas não salva o filme.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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