Pensata

Sylvia Colombo

08/12/2006

Reparação

Uma velhinha que acaba de morrer de câncer, um escritor de fama internacional, uma agente literária oportunista e jornalistas, como reza o clichê, ávidos por manchetes sensacionalistas. A confusão estava armada. E, sem que crime algum tivesse realmente acontecido, uma longa discussão literária tomou conta da mídia britânica. Enfim, a pobre senhora, que escreveu mais de 30 livros em vida, mas permanecia praticamente desconhecida até sua morte, aos 86 anos, em outubro, finalmente foi alçada à fama.

Confuso, não? Mas é que a trama é mesmo novelesca. No domingo passado, dia 26 de novembro, o jornal britânico "Mail on Sunday" trouxe uma matéria acusando o escritor Ian McEwan, 58 --o mais importante do país e quiçá de sua geração--, de copiar frases inteiras de "No Time for Romance" (1977), autobiografia de Lucilla Andrews, uma ex-enfermeira de hospital durante a Segunda Guerra Mundial, para compor parte de um cenário de seu aclamado romance "Reparação" (2001). Com ele, McEwan foi nomeado entre os finalistas do Booker Prize daquele ano e recebeu loas e mais loas de crítica e público.

A história se espalhou rapidamente. Para piorar a situação de McEwan, houve quem de imediato lembrasse outros casos de supostos plágios do autor. Em 1978, "O Jardim de Cimento" foi acusado de guardar semelhanças com "Our Mother's House" (1963), de Julian Gloag. Poucos anos depois, "The Comfort of Strangers" (1999) também suscitaria comentários, por ter partes parecidas ao conto "Don't Look Now", de Daphne du Maurier. Ou seja, com essa culpa toda no cartório, não haveria dúvidas de que o autor teria mesmo surrupiado idéias da escritora morta.

Folha Imagem/04.07.2004
O escritor Ian McEwan, 58, acusado de plágio
O escritor Ian McEwan, 58, acusado de plágio
De concreto, o que de fato veio à tona por meio da agente literária Vanessa Holt foi que Andrews havia sido alertada por uma estudante de Oxford sobre a semelhança dos dois livros um ano antes de morrer e que teria dado a entender, ainda segundo a agente, que chamaria a atenção para isso publicamente. Nada mais.

A partir daí as evidências a favor de McEwan começaram a surgir de modo a derrubar a polêmica e a histeria midiática criada em torno. Num artigo publicado no diário "The Guardian", no dia seguinte aos acontecimentos, McEwan contou que deu crédito, ao final do livro, às fontes que pesquisou (e é fato, quem tem o exemplar pode verificar ali, na última página). A autobiografia de Andrews é mencionada tanto quanto os documentos consultados no Imperial War Museum. McEwan ainda acrescentou que usou muitas das memórias do seu próprio pai, que atuou como oficial da RAF (Royal Air Force).

"Reparação" (Companhia das Letras) é um romance que se passa em três tempos e tem como protagonista Briony Tallis. Nos anos 30, ela é uma menina de 13 anos que comete uma grande injustiça, prejudicando a irmã e seu amante. O livro, que se segue em mais duas seções --uma que se passa durante a Segunda Guerra e outra na Londres dos anos 90-- tem como eixo a tentativa de Briony de reparar o mal que fez. A acusação de plágio a McEwan se refere a essa segunda seção da obra, quando parte da ação se passa num hospital de guerra. E os três trechos "suspeitos" dizem respeito a descrições de práticas médicas daquela época. Ou seja, a detalhes factuais e não a diálogos ou divagações subjetivas.

Pois bem, só que desde a publicação do artigo do escritor, cujo nome é "An Inspiration, Yes. Did I Copy from Another Author, No" ("Uma inspiração, sim. Se eu copiei de um outro autor, não") uma grande discussão sobre o que é ou não é plágio nos dias de hoje tomou espaço na mídia britânica. Até o fechamento desta coluna, por exemplo, o site do autor (www.ianmcewan.com) ainda publicava textos novos de jornalistas e outros escritores comentando o assunto.

De todo o debate, dois temas para pensar

O primeiro: o que pode e o que não pode ser inventado quando se cria um romance histórico? McEwan responde por meio do artigo: "quando alguém cruza as linhas entre fantasia e o registro histórico, sente uma enorme necessidade de ser acurado. Escrever sobre a guerra, especificamente, parece ser uma forma de respeitar o sofrimento de uma geração arrancada de sua vida comum para ser presa num pesadelo".

De fato, quem gostaria de ler uma novela baseada num episódio histórico se várias passagens não batem com o que se supõe que aconteceu? Quem gostaria de assistir a um filme como, sei lá, "A Lista de Schindler", e ver que os nazistas combinavam suas operações pelo MSN?

Logo na abertura de seu mais recente romance, o excelente "Dias Exemplares", o norte-americano Michael Cunningham (de "As Horas") diz: "todo escritor que ambienta uma parte ou a totalidade de um romance numa época e num local identificáveis se defronta com a questão da veracidade. A resposta mais simples é também a mais rigorosa: os fatos históricos devem ser apresentados com absoluta precisão. As batalhas devem ser travadas onde e quando de fato ocorreram; os zeppelins não podem aparecer nos céus um momento antes de terem sido inventados". Ao final do romance, Cunningham lista os livros que consultou para fazer um retrato realista da Nova York de 1870, sem que, com isso, a trama propriamente ficcional tenha sofrido qualquer tipo de prejuízo. Muito pelo contrário.

Divulgação
O escritor Mario Vargas Llosa
O escritor Mario Vargas Llosa
Também "Travessuras da Menina Má", do peruano Mario Vargas Llosa (leia entrevista publicada na Ilustrada na última terça-feira) tem a história --e uma longa história, dos anos 50 aos dias de hoje-- como pano de fundo de uma trama de amor. Não há ali um fato fora do lugar e o escritor não se valeu apenas das lembranças. Foi buscar em publicações e jornais de época a confirmação para as datas dos principais eventos, para não cometer anacronismos.

Na última terça-feira, o "Daily Telegraph" divulgou opiniões de alguns escritores a favor de McEwan. A canadense Margaret Atwood disse: "Plágio é tirar algo do texto de alguém sem dar crédito. É estúpido e equivocado dizer que MacEwan fez isso". O irlandês Colm Tóibín acrescentou: "Um romance é um trabalho de imaginação, mas que depende dos fatos, joga com os fatos". E o inglês Kazuo Ishiguro perguntou: "Os romancistas não devem mais fazer pesquisa? Não queremos nenhuma ligação autêntica entre história e ficção?". Por fim, até o recluso Thomas Pynchon saiu em defesa do inglês, na última quarta-feira, declarando: "Descobrir no meio de uma pesquisa um detalhe interessante da história que podemos usar em nosso romance não pode ser classificado como ato criminoso _é simplesmente o que nós fazemos."

Enfim, o que parece indiscutível é que o descrédito que um autor pode sofrer por não fazer direito a lição de casa (ou seja, pesquisar a fundo o assunto sobre o qual escreve) é bem pior do que a acusação de que uma passagem de seu romance guarde alguma semelhança com uma descrição feita antes por outra pessoa --ainda mais quando se trata de uma testemunha ocular de determinado episódio.

Já o segundo tema tem a ver com uma questão um pouco mais complicada. Que história sobre o homem, seus sentimentos e reações, ainda não foi contada? Que questionamentos de nossa alma já não foram feitos por tantos e tantos textos e peças clássicas? Já não estaria tudo em Proust, em Shakespeare, ou nos russos? Então, por que continuar escrevendo e consumindo literatura?

Em artigo para o "Observer", Robert McCrum se pergunta se a originalidade literária está perdendo valor nesse século 21. Estaríamos esgotando --pelo menos a essência-- das poucas tramas que a humanidade sabe viver? De quantos "temas" dispõe um romancista hoje? Meia dúzia, ou menos? Sexo, poder, morte, ciúmes, posse, religião, alguém tem mais alguma sugestão? Pois a ridícula e fatídica expressão "o mordomo é sempre o culpado" parece ser uma irônica mostra do quão repetitiva é a criatividade humana para criar enredos.

Voltando ao próprio McEwan como exemplo, seu mais recente livro, "Sábado", tem como protagonista um neurocirurgião que é muito parecido com o personagem principal de um outro livro seu, "Amor Sem Fim" (o famoso livro do balão). Ambos são homens racionais, pés fincados na ciência, que não entendem como é difícil lidar com as emoções humanas. Dois livros sobre o embate entre razão e sentimentos. Você já ouviu essa história antes? Pois é. Nem por isso "Amor Sem Fim", "Sábado" e centenas de outros bons romances já produzidos sobre esse mesmo confronto são dispensáveis.

Enfim, abaixo deixo as provas do crime, dois dos trechos de McEwan acusados de plágio. Ah, e antes que alguém também aponte o dedo para mim, tirei-os da versão online do "Times" (www.timesonline.co.uk).

De "Reparação":

"she had already dabbed gentian violet on ringworm, aquaflavine emulsion on a cut, and painted lead lotion on a bruise"

De "No Time for Romance":

"Our nursing seldom involved more than dabbing gentian violet on ringworm, aquaflavine emulsion on cuts and scratches, lead lotion on bruises and sprains"

De "Reparação":

"These bandages are so tight. Will you loosen them for me a little...There's a good girl ... go and wash the blood from your face. We don't want the other patients upset."

De "No Time For Romance":

"Go and wash that blood off your face and neck . . . It'll upset the patients"
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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