Pensata

Sylvia Colombo

12/01/2007

Tchau, Gabo

Há mais de um ano um livro medíocre praticamente não sai das listas de mais vendidos do país. Se sai, volta rapidinho, como aconteceu nesta semana. Até aí, grande coisa. Esse tipo de levantamento, como sabemos, raras vezes ajuda a avaliar a qualidade literária de determinada obra. O problema é que esse tal livro medíocre é o último romance de um dos mais importantes nomes das letras latino-americanas, o colombiano Gabriel García Márquez, 78, prêmio Nobel (1982) e autor de pelo menos um clássico do século 20, "Cem Anos de Solidão" (1967), além de mais um punhado de outros livros excelentes.

Por isso é no mínimo uma pena --e concretamente um vexame-- o nome do escritor continuar em voga por conta de uma obra tão fraca, apelativa e mal-escrita: "Memória de Minhas Putas Tristes" (ed. Record), esse livro que traz na capa um velhinho alquebrado andando rumo ao infinito e que figura há tempos na primeira fila das grandes livrarias do Brasil. Desde seu lançamento, em julho de 2005, já vendeu impressionantes 257 mil cópias.

Toda vez que vejo esse título numa lista dessas, fico constrangida por Gabo, imaginando que sua reputação literária está indo pelo ralo só porque, talvez por brincadeira (quero acreditar), sem ter mais o que fazer, ele tenha resolvido preencher o tempo escrevendo um texto tão bobo e machista sobre um sujeito idoso, assustado pelo fantasma da impotência, que resolve ter uma noite de amor com uma virgem para comemorar seu aniversário de 90 anos. A trama segue sofrível, e óbvia, o homem que fora avesso ao amor por toda a vida, finalmente se apaixona quando uma ninfeta lhe é oferecida por uma cafetina que conhecera na juventude.

Em suma, tenho uma imensa vontade de me plantar na porta das livrarias e abordar cada um dos que saem delas com o livro nas mãos e exortá-los a devolver a compra para pegar, no lugar, outra obra realmente valiosa do autor, como "O General em Seu Labirinto" (1989), "O Amor nos Tempos do Cólera" (1985), o próprio "Cem Anos" --que faz seu 40º aniversário em 2007-- ou, ainda, o mais recente volume de memórias do autor, "Viver para Contar". Lançado em 2003 e anunciado como o primeiro de uma trilogia biográfica, o livro traz os "bastidores" da invenção do realismo mágico, revelando, enfim, que ele nem era tão mágico assim _Gabo conta ali como suas tias, seus avós e os personagens de Aracataca (sua cidade natal) tinham, de verdade e em carne e osso, muitas das características fantásticas que seus personagens apresentariam no futuro.

O que explicaria o sucesso retumbante de "Memórias de Minhas Putas Tristes"? O fato de se tratar de uma obra curta de um autor famoso com certeza é um dos atrativos. Em cento e vinte páginas, pronto, o sujeito pode dizer que já leu pelo menos um romance de García Márquez. A segunda razão, creio que mais importante, deve ser o fato de o título ter a palavra "puta" no meio. Pobre de quem compra o livro, entretanto, pensando que ele tem algo de erótico ou pornográfico. Trata-se justamente do contrário. A história é romântica, açucarada, enfim, piegas à beça.

Mas os sinais da decadência intelectual de Gabo já se mostram há tempos. Não termos ouvido até hoje sequer uma reprimenda ou uma palavra de desacordo com relação ao que seu grande amigo Fidel Castro faz em Cuba talvez seja o mais importante deles. Nem no famoso episódio em que três dissidentes do regime castrista foram executados, em 2003, ouvimos uma crítica de Gabo. E olhe que até Saramago chiou. A seu modo, mas chiou...

Quando visitei Cartagena de Índias, lembro que quis visitar a casa que Gabo construiu naquela bela cidade colonial colombiana. O motorista do táxi logo de cara torceu o nariz: "Não dá para ver nada lá, só um muro bem alto". Insisti e fomos. O centro histórico de Cartagena é todo preservado e a maioria das construções são da época do apogeu da cidade. Poucas coisas destoam da paisagem. Infelizmente, a casa de Gabo é uma delas. Uma construção fortificada de um imenso mau gosto ostentatório. E parece, ainda, que ele pouco vai até lá. Sujou a paisagem e depois partiu para morar em San Angel, um dos bairros mais aristocráticos da Cidade do México.

É certo que o homem está doente há tempos e que de certo modo é de mau gosto falar dele assim. Mas o fato é que a América Latina hoje é um lugar diferente daquele em que Gabo reinou e abrir os olhos para seus novos autores, sua nova produção cultural e suas novas idéias talvez ajude a entender a efervescente e complicada situação política do continente do qual, queira ou não, o Brasil faz parte.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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