Pensata

Sylvia Colombo

30/03/2007

Se habla español

"No, no, pero yo hablo portunhol"

Nada me irrita mais, quando estou em um país qualquer da América Latina, do que ouvir essa resposta da boca de um brasileiro, contestando a um nativo que lhe pergunta se ele sabe falar espanhol. Infelizmente, já vi isso acontecer dezenas de vezes.

Geralmente, a frase vem seguida de uma risadinha. O que me faz supor que o sujeito que a diz se vê conferido de uma espécie de autoridade, que só é alcançada pelos espertinhos que acham que podem dar um "jeitinho brasileiro" numa situação para eles desconfortável, que é a de estar num país estrangeiro em que se fala uma outra língua. "Outra língua?", devem pensar, "pra que aprender, não é mesmo? É tão parecida com o português..." Ao dizer que "habla portunhol", o sujeito não só pode tirar uma onda com um idioma que acha inferior e esquisito ("imagine, cada expressão cafona, tipo "lamentablemente" ou "que disfrute"), como resolve a parada de contornar a própria ignorância. No "orgulho do portunhol" se expressa o lado obscuro da nossa tão falada cordialidade. Além de deixar exposta uma vergonhosa falta de curiosidade pelos vizinhos.

É certo que hoje há leis para que se estude espanhol desde cedo no Brasil. Mas daí a superar preconceitos, vai um bom caminho. O pior deles se reflete no total desinteresse pelo que acontece no mundo hispano-americano. Se o assunto é cinema, por exemplo, a exigência para a aceitação de tal filme argentino ou mexicano é que tenha se dado bem antes em Cannes ou em Sundance. Se é música, só vale se o "New York Times", o "Guardian" ou alguma das revistas britânicas especializadas já a tenha aprovado. Se é literatura, depende de ter sido ou não traduzida para o inglês por um selo confiável.

Numa dessas, estamos perdendo de vista uma gigantesca transformação na indústria do entretenimento (tanto da comercial como da artística) e no modo como este planeta se comunica. O espanhol está crescendo de modo vertiginoso, não só no que diz respeito ao número de pessoas que o utilizam diariamente ---mais de 400 milhões--- como em influência cultural ---artistas pop que se expressam nessa língua, por exemplo, enchem estádios pelos EUA, Europa e Japão--- e na presença no espaço virtual, este mesmo em que eu e você estamos navegando agora ---já notou que os verbetes da Wikipedia em espanhol muitas vezes são mais completos?

Vim parar na Colômbia nesta semana por conta de um outro assunto (leia em breve na Ilustrada), mas o fato é que me surpreendi com o tamanho de dois eventos, o 13º Congreso de la Asociación de Academias de la Lengua Española, em Medellín, e o 4º Congreso Internacional de la Lengua Española, em Cartagena, que estavam rolando nesses dias. Pode soar como algo de interesse apenas regional, mas não. Ambos serviram de gancho para uma das maiores reuniões até hoje de representantes de países de língua espanhola voltados específicamente para esse tema. Escritores e intelectuais de diversas áreas de 22 países onde o espanhol é falado reuniram-se para tratar do atual estado da língua.

O semanal "Babelia", do jornal "El País", da Espanha, aproveitou a ocasião para fazer uma edição especial sobre a "euforia mundial" que vive o idioma, ainda que sem esconder um aspecto alarmante, ao menos para os espanhóis: a Espanha está definitivamente deixando de ser protagonista na história da língua, passando, enfim, o bastão para a América Latina.

O encontro de Medellín anunciou uma nova gramática internacional do espanhol, que sairá ainda em setembro deste ano. Será, pois, mais latino-americana. Vai unificar o uso de certos recursos, contemplar inúmeras variações regionais, fazer compatíveis algumas regras para as distintas regiões e colocar o foco também no espanhol que se fala em países que não o têm como primeira língua ---o caso mais importante é o dos EUA, onde estão 45 milhões do total de hispanohablantes do planeta.

Já o de Cartagena louvou Gabriel García Marquez, que completou 80 anos, e seu "Cem Anos de Solidão", que fez 40 e ganha uma edição de luxo, revisada pelo próprio e lançada pela Real Academia Espanhola com o mesmo cuidado dispensado à edição comemorativa dos 400 anos do "Don Quijote", no ano passado. Terá textos introdutórios de Carlos Fuentes, Álvaro Mútis e Mario Vargas Llosa. Ainda, uma árvore genealógica dos Buendía e, o mais interessante, um glossário de termos "fantásticos" celebrizados pela obra, como "babilónico" (relativo aos prazeres sexuais), "calomel" (substância com propriedades purgantes) ou "jarapellinoso" (que não quer dizer nada, é invenção do escritor mesmo). Gabo, hoje recluso e escrevendo não lá grandes coisas, apareceu na segunda-feira, para o aplauso reverente do público e de escritores presentes em Cartagena (entre eles o argentino Tomaz Eloy Martinez e o espanhol Antonio Muñoz Molina).

O espanhol é hoje a quarta língua mais falada no mundo (depois do chinês, do híndi e do inglês). Há quem diga que vai logo competir diretamente com o inglês. O lingüista britânico David Graddol, ouvido pelo "Babelia", já cravou a data: 2050. Não está tão longe. Será que dá tempo para saírmos do arroz-com-feijão do nosso diálogo com os vizinhos?

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    Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

    E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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