Pensata

Sylvia Colombo

28/07/2006

Um ano sem Saer

Francisco Del Puerto era o nome dele. O jovem grumete foi o único sobrevivente da frota comandada pelo espanhol Juan de Solis, em 1516, navegador que, ao tentar desembarcar numa ilha do Rio da Prata, foi assassinado pelos índios charrúas, assim como todos os europeus que o acompanhavam. Por razões até hoje insondáveis, o fato é que o rapaz foi preservado pelos nativos, viveu quase dez anos entre eles, casou-se e teve filhos antes de ser devolvido à "civilização".

A historia do adolescente que escapou de uma terrível matança e passou a ser um dos primeiros argentinos de origem européia é, no mínimo, fascinante. E fica ainda mais interessante se pensarmos que esse homem transitou (indo e voltando) entre os dois mundos então possíveis naquela época, e que encerravam não apenas culturas diferentes, mas oposições que desde sempre percorrem a história e a alma humanas (civilização e barbárie, racional e irracional, etc...).

Cleo Velleda/Folha Imagem
Juan Jose Saer (1937-2005) investiga os tempos que compõem a memória humana
Juan Jose Saer (1937-2005) investiga os tempos que compõem a memória humana
Pois o episodio é tão rico que, quando ficou sabendo dele, Juan Jose Saer (1937-2005) não quis ler mais nada sobre o assunto. E escreveu, a partir dessa passagem, um dos livros mais angustiantes da literatura latino-americana contemporânea, "O Enteado" (lançado aqui pela editora Iluminuras). Não se trata de um romance histórico, mas sim um romance dentro da história, que dedica seu olhar a investigar os tempos que compõem a memória humana, observar e refletir sobre ela.

Mas, por que falar hoje de Saer? Bom, eu me lembrei de Saer porque passei alguns dias desta semana em Buenos Aires, justamente, perto do parque Lezama, onde, em 1536, 20 anos depois da tentativa frustrada de Solís de chegar à terra firme, a capital da Argentina foi, enfim, fundada (pela primeira vez; pois houve duas fundações, mas essa é outra história interessante que, se vocês quiserem, eu conto depois). O fato é que, num passeio pelas livrarias portenhas, topei com o recém-lançado "Trabajos" (ed. Seix-Barral), edição póstuma de escritos do autor, que morreu há pouco mais de um ano (11 de junho de 2005). De lá para cá, o mercado editorial (não o brasileiro, por supuesto) já havia lançado "La Grande", romance que o autor deixou inacabado e que conta a história de um homem que regressa à sua cidade após uma longa ausência --e cujo capítulo final teve apenas a primeira linha escrita: "con la lluvia, llegó el otoño, y con el otoño, el tiempo del vino".

Se de partidas e chegadas, viagens pelo tempo e pela memória, trata a obra de Saer, "Trabajos" lida com o que o escritor produziu de mais efêmero --artigos de jornal--, mas não menos interessantes.

Esses pequenos ensaios foram publicados em vários jornais, na Folha inclusive, nos últimos seis anos. Colaborador frequente do caderno Mais!, Saer escrevia também para "El País", da Espanha, "La Nacion", da Argentina e outros. Nos textos recolhidos, mostra sua preocupação com a literatura e um olhar nada provinciano, uma vez que comenta de Dostoiévski a Cervantes, de Kafka a Flaubert, ao lado de Drummond e Felisberto Hernández, por exemplo. Os mais interessantes são os três finais, dedicados ao universo do uruguaio Juan Carlos Onetti e sua cidade mítica, Santa Maria.

É uma pena que a publicação dos livros de Saer seja tão irregular no Brasil. No ano passado, a Companhia das Letras lançou "A Ocasião". A mesma editora tem no seu catálogo "Ninguém Nada Nunca" e "A Pesquisa" e pretende colocar no mercado, em breve, "As Nuvens". Mas faltam, ainda, voltar às livrarias alguns de seus livros mais importantes, como "Glosa", "Unidad de Lugar" e outros. Que a efeméride fique de lembrança e recomendação.




O NAUFRÁGIO DOS PIRATAS

Divulgação
Cena de
Cena de "Piratas do Caribe 2": salva-se Johnny Depp, com seu herói-sem-moral-freak
É impressão minha ou tudo em Hollywood está ficando (ainda mais) parecido? Fui assistir a "Piratas do Caribe 2", pensando em ver uma seqüência da inteligente primeira parte da trilogia, de 2003. Em vez disso, saí atordoada com a sensação de ter passado por uma mistura de "Tróia" (cenas de navegação fantasticamente filmadas), "Senhor dos Anéis" (criaturas horrendas impecáveis) e "King Kong" (sustos e mais sustos até esvaziar o poder de assustar) ao mesmo tempo. Sucessão de efeitos exagerados, soluções mirabolantes para dilemas mais-do-que-confusos e atuações muito aquém do nível (leia-se o galã Orlando Bloom) desembocam num final em aberto e revoltante. Tudo bem que já é sabido que ainda falta uma parte, mas isso não era desculpa pra encerrar a história de supetão desse jeito. Salva-se Johnny Depp, para variar, com seu herói-sem-moral-freak, o capitão Jack Sparrow. Mas é pouco para valer um ingresso. A ter de assistir à seqüência final, prometida para 2007, prefiro andar pela prancha em direção aos tubarões...




"BUENA ONDA", PERO NO MUCHO

Que novo cinema argentino, que nada. Aos entusiastas da febre da "buena onda" (eu mesma incluída), um aviso: é hora de acalmar. Pelo menos na Argentina, apesar do sucesso de crítica e do prestígio internacional, a cinematografia de "arte" local está interessando cada vez menos os próprios argentinos. É o que mostra o sucesso da comédia escrachada e comercial "Bañeros 3", sobre um bando de salva-vidas atrapalhados tentando seduzir gostosonas na praia . O filme foi o mais visto em Buenos Aires em seu fim de semana de estréia. Apesar de malhado pela crítica, desbancou "Carros", "Superman" e o próprio "Piratas do Caribe 2", e arrecadou para o Incaa (Instituto Nacional de Cine y Artes Visuales) o suficiente para produzir um punhado de produções-cabeça que, pelo que mostram os números, pouquíssimas pessoas vão ver. De 71 filmes argentinos estreados em 2005, por exemplo, apenas sete tiveram mais de 100 mil espectadores, 51 não reuniram mais de 10 mil e 22 sequer venderam mil entradas. "Bañeros 3", com o perdão do trocadilho, dá um belo banho de água fria e realidade nos cineastas badalados nos festivais europeus e nos cadernos culturais, por ali e por aqui.

Bom, depois dessa overdose de Argentina, prometo mudar de assunto na semana que vem. Se tudo der certo, as notícias vão vir da terra de Grosso e Materazzi.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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