Pensata

Sylvia Colombo

04/08/2006

Brasil para gringos

Não é novidade que a música pop do Brasil tenha se enfeitado para a exportação com a ajuda da eletrônica e uma bela carregada nas cores que pintam o nosso país como um recanto paradisíaco e sexual do mundo. Tampouco se ignora que a exposição da música brasileira produzida para agradar o mercado gringo tomou ainda mais força há alguns anos, quando as "sonoridades" do Terceiro Mundo (rebatizadas de world music) viraram motivo de culto internacional dos "alternativos" do mundo globalizado, de uma hora para a outra ávidos por deixar-se inebriar pela batida de culturas distantes.

Mas o fato é que, cada vez que a temperatura aumenta na Europa, essa colagem eletrônica de sons tropicais, hippies, exóticos e dançantes invade baladas e praias, restaurantes e lojas de roupas em promoção lotadas de turistas.

Em Roma, resolvi fuçar os lançamentos de discos deste verão europeu para checar o que está bombando dentro do "estilo", que a mim soa como uma grande mistureba oportunista. Escolhi três.

O primeiro foi "Beach Freak". Capa ilustrada com um pôr-do-Sol. No horizonte, as sombras de um surfista e de um pássaro. O subtítulo resume o "conceito" do álbum: "Warm Sounds for Nu Hippies" (sons mornos para novos hippies). O texto da contracapa explica que a idéia é reviver o espírito de união dos jovens dos anos 60 e a vontade destes de viver de modo harmônico com a natureza. OK. Vamos às músicas, que misturam bossa nova, reggae jamaicano, batida carioca contemporânea e surf music californiana. Tudo a ver com tudo. Tem, por exemplo, nosso Rogério Flausino, do Jota Quest, cantando com a dupla de DJs britânica Layo & Bushwacka, em "Sunshine in Ipanema". Na letra, ele diz que precisa voltar para o Rio de Janeiro para ver o mar porque não abre mão de ser feliz (ué, mas o Jota Quest não era de Belo Horizonte?). Também estão no disco os Torpedo Boyz (?!?!), com "Jamais Imaginei", canção embalada por letra inspiradíssima: "penso com o coração, faço com emoção".

O segundo álbum (duplo) também tem, veja você, a capa ilustrada por um pôr-do-Sol. Mas, em vez de um surfista, vemos três meninos que jogam bola. O título é "Brazilution" (sacou?). Fabricado e produzido em Berlim, leva o subtítulo em português: "música eletrônica com sabor do Brasil". São dois CDs, um branco ("sol side") e um laranja ("luna side"). Segundo o encarte, o projeto traz uma "cativante mistura de bossa nova 'profunda' com nu-jazz latino suave e dançante".

Por que os artistas brasileiros que estão nessa coletânea aceitam esses rótulos e essa edição TÃO de mau gosto e TÃO direcionada ao mercado? Mistério. Tirando algumas boas faixas ("Rio Bahia", com Joyce e Dori Caymmi, por exemplo), o resto é inexpressivo e, pior, muito chato. Parece que eles pensam que agradar estrangeiros é mais fácil do que se expor à crítica do público brasileiro. Parece?

Bom, vamos ao terceiro disco, já com os ouvidos pedindo silêncio. "The Nightfly" (vol.10), álbum triplo organizado por Nick the NightFly, apresentador de rádio italiano. A capa anuncia: "o melhor em nu jazz, lounge, chill out, brasil e nu soul" (aqui, como vemos, nosso "Brasil for export" já é um gênero à parte, com letras minúsculas...). Entre as pérolas, está uma versão meio bossa nova para "Holding Back the Years", do Simply Red, e uma jazz para "Don't Leave Me This Way", dos Communards. Depois vem a seção "motions". Dedicada "ao calor do ritmo do Brasil", não traz necessariamente artistas brasileiros, mas também estrangeiros que "aprenderam" a fazer o tal novo som brasileiro para outros estrangeiros (sim, porque a coisa vai se multiplicando). Também está a onipresente Bebel Gilberto, com um remix de "Aganju". Mas o melhor é uma versão bossa nova (por supuesto) de "Roxanne", do Police. A letra surge em um português de não-sei-de-onde, mas juro que o refrão é: "Roxánne, não ligar a luz da tua sombra não".




OUTRA DE ROMANOS

Gosto de fazer leituras temáticas quando viajo. Para essa brevíssima passagem pela Itália, resolvi ler o capítulo sobre Roma de "Neither Here Nor There" (ed. Black Swan, importado), do norte-americano Bill Bryson. Antes de mais nada, falemos de Bryson. É um escritor incrível. Não no sentido de que produz uma literatura de primeira linha, mas sim porque escreve muitíssimo bem. É o tipo do cara que, se der na telha fazer um livro de 600 páginas sobre, digamos, tijolos, você lerá sem piscar os olhos. Foi assim comigo e com alguns amigos, por exemplo, que leram "Uma Breve História de Quase Tudo" (Companhia das Letras), na qual Bryson passeia pela história do conhecimento científico do homem num livro cheio de informações transmitidas com um bom humor e uma ironia cativantes.

Bom, mas voltando ao livrinho de viagens do autor pela Europa. Bryson --que é norte-americano, mas viveu muitos anos em Londres-- pinta um retrato caótico e divertido sobre Roma. Assustado com o excesso de informalidade, de comunicação gestual e com o desleixo dos italianos com relação às próprias leis, o escritor não deixa de lado um detalhe dos costumes locais. E as observações mais divertidas são com relação ao trânsito. Primeiro, ele não se conforma com a maneira como os italianos estacionam. "Você vira em qualquer esquina de Roma e sempre parece que acabou de perder uma competição de estacionamento para pessoas cegas. Os carros apontam para todas as direções. Os romanos estacionam os carros do jeito que eu faria se tivesse derramado um vaso de ácido corrosivo no meu colo". Depois, sobre a célebre falta de prudência dos motoristas italianos: "A primeira vez que eles vão notar a sua presença será por meio do vidro retrovisor, quando você já estiver caído na rua, atrás deles".

Vale a pena ler Bryson, seja falando do espaço sideral, de uma cidade européia ou tirando uma onda dos americanos e dos ingleses ---algo que adora fazer. No Brasil, estão traduzidos alguns de seus livros, como "Crônicas de Um País Bem Grande" e "Uma Caminhada na Floresta", além da "Breve História" (todos pela Companhia das Letras).




PARATI, PARA QUEM?

Começa no dia 9, quinta-feira que vem, a quarta edição da Festa Literária de Parati, evento inspirado num modelo europeu de encontro de escritores que lêem suas próprias obras e conversam de perto com o público. Para quem não reservou pousada a tempo ou não se entusiasmou de cara pelo programa, ficam pelo menos as dicas dos bons livros que serão lançados aqui por conta do evento. Vai uma listinha selecionada: "Por Acaso", livro que deu o prêmio Whitbread à escocesa Ali Smith (Companhia das Letras); "Amor, Pobreza e Guerra", do polemista Christopher Hitchens (Ediouro), a viagem alegórica do mexicano David Toscana em "Santa Maria do Circo"(Casa da Palavra) e "O Último Leitor", elogiadíssimo mais recente lançamento do veterano argentino Ricardo Piglia (Companhia das Letras).




LITERATURA DO DELÍRIO

Alguns leitores, para minha surpresa, me pediram para continuar a história que estava contando na semana passada, sobre Buenos Aires. Respondo com um pouco de história, um pouco de literatura e duas sugestões de leitura.

Depois do fracasso de Juan de Solís no Rio da Prata (como contei antes), a coroa espanhola ficou ainda mais preocupada com o avanço dos portugueses no Sul do Brasil. Encomendou, em 1535, uma expedição a um jovem rico e experiente em batalhas, Pedro de Mendoza. O projeto era ambicioso, não se tratava apenas de uma conquista, a idéia era formar as bases de um povoamento de verdade na região --até médicos e padres vieram no pacote. No dia 3 de fevereiro de 1536, Mendoza fincou as pedras fundadoras dos primeiros fortes e das primeiras casas do lugar que passaria a chamar de Santa Maria de Buen Ayre. Só que os espanhóis não contavam com a agressividade dos nativos que viviam ali. E o que começou apenas como um estranhamento logo progrediu para um cerco que deixou os europeus isolados, com fome e medo. Desesperado, Mendoza enviou o irmão e mais um grupo para enfrentar os índios. Foram todos imediatamente dizimados, os nativos invadiram a "cidade" e botaram tudo abaixo. Mendoza correu para o norte e chegou a embarcar de volta a Espanha, mas morreu no meio da viagem. Só depois de 44 anos os espanhóis voltaram ao que tinha sido palco de um sangrento massacre e refundaram Buenos Aires, em 1580.

Os sobreviventes do massacre de 1536 deixaram relatos dos horrores do cerco e da fome que precederam o desastre final da expedição. Mas, como em muitos episódios da história, não é possível remontar o que sentiram aqueles homens acossados, delirando por falta de alimentos. O escritor Manuel Mujica Lainez (1910-1984) decidiu especular o que foram aqueles dias e elaborou, a partir deles, um fascinante relato psicológico-literário. Conta que Mendoza mandou enforcar três de seus homens que teriam roubado um cavalo para comer. Os cadáveres, pendurados na forca, girando "en los dedos del viento" viraram, então, objeto de disputa dos homens esfomeados que mataram e morreram para tentar devorá-los. A passagem parece uma cena de thriller e está em "Misteriosa Buenos Aires" (ed. Seix-Barral, importado), um dos livros mais importantes do autor. Outro que conta a história da cidade de maneira rica e imaginativa é o historiador Felipe Pigna, no capítulo "Santa María de los Buenos Hambres", de "Los Mitos de la Historia Argentina" (editorial Norma, importado).

Em tempo, dá para encomendar livros em espanhol estrangeiros por meio da Livraria Cultura (www.livcultura.com.br) ou pelos sites www.casadellibro.com (espanhol) ou www.prometeolibros.com.ar (argentino).
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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