Pensata

Sylvia Colombo

18/08/2006

Parati para quem?

Os dias foram ensolarados, a cidade estava alegre e agitada, com bares, cafés e restaurantes lotados. Além de tudo, havia a oportunidade de encontrar escritores e de falar de livros durante o dia. Havia. Mas a verdade é que ela não foi lá muito bem aproveitada. A quarta edição da Festa Literária Internacional de Parati, que aconteceu nesta cidade fluminense na semana passada, mais uma vez foi marcada por um blábláblá interminável sobre como autores, público e jornalistas acham que os EUA deveriam se comportar perante o mundo. E tudo isso, provavelmente, porque:

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Raoni, 3, com livros na Tenda da Flipinha durante a lV Flip, em Parati (RJ)
Raoni, 3, com livros na Tenda da Flipinha durante a lV Flip, em Parati (RJ)


* Parte do público que vai a Flip conhece muito pouco os autores e suas obras, por isso é mais fácil conversar com os escritores sobre o que se vê na TV e nos diários.

* Muitas vezes os jornalistas estão mais atrás de títulos fortes (do tipo "fulano-de-tal pede fim do imperialismo norte-americano") do que de acompanhar discussões mais densas sobre um romance ou um ensaio.

* Em alguns casos, os próprios escritores é que querem usar um evento como a Flip como palco para seu show particular ---e, com isso, fazer uma boa propaganda pessoal.

Não estou sugerindo de maneira nenhuma que não se fale de temas tão candentes como o conflito no Oriente Médio ou a Guerra do Iraque num festival de literatura. Afinal toda literatura é política, mesmo quando não quer ser, porque reflete o mundo e o contexto em que surge. Eu mesma já fiz várias entrevistas em que essas duas coisas estavam mais do que vinculadas e discutir ambas está entre as coisas que gosto de ---e acho necessário--- fazer. Mas confesso que no meio da cobertura da Flip eu já estava cansada de ouvir as banalidades ditas progressistas que estavam no ar. E o manifesto que o paquistanês Tariq Ali lançou, tentando amealhar assinaturas para pedir a "retirada imediata das tropas israelenses do Líbano" e o "fim da ocupação do Iraque e dos territórios palestinos" só colaborou para desviar ainda mais os debates da discussão literária.

Sorte é que também havia gente lúcida, pronta para defender os livros e suas tramas como protagonistas num evento que se propõe, justamente, literário. O norte-americano Jonathan Safran Foer pediu que se parasse de falar de coisas que a CNN transmite 24 horas por dia e que se valorizasse um evento que coloca as crianças na praça principal da cidade para brincar no meio de bonecos gigantes de personagens literários. A escocesa Ali Smith completou: "A arte é inevitavelmente política, como tudo acaba sendo. O que não faz sentido é você ter um projeto político antes de se sentar para começar a escrever uma obra de ficção". Concordo com ambos 100%.

Pouco antes da Flip de 2004, eu e meu então colega e sempre amigo Cassiano Elek Machado entrevistamos os três escritores de peso que vieram para o evento daquele ano (quando a Flip ainda trazia mais de um escritor de peso para a programação): Paul Auster, Ian McEwan e Martin Amis. Os três comentaram a intensa politização do mundo e da literatura. Queria lembrar algumas frases de então que valem para o debate de agora:

"Os homens sempre acham que estão vivendo o tempo mais terrível da história. É assim hoje, mas olhe para o século 20, quanto horror foi perpetrado pelos homens a outros homens. A literatura sempre sobreviveu a isso tudo. A grande coisa a respeito dos romances é que eles são sobre indivíduos. E isso é a expressão da democracia. A idéia de que toda vida merece ser comentada. Escrever sobre coisas grandes, sobre movimentos de massa, pode ser nobre, mas não necessariamente dá boa literatura"
Paul Auster [norte-americano, autor de "A Trilogia de Nova York" e "Desvarios no Brooklyn"]

"Esta é a pior época da história em pelo menos um aspecto. Existe menos inocência. Nós já surgimos como os "não-inocentes", por pura agregação."
Martin Amis [britânico, autor de "A Informação" e "Koba the Dread"]

"Nossa época, que é muito ruim em particular, tem um apelo para escritores, pois a ficção sempre mostrou vidas particulares diante de movimentos maiores. Escrever é uma investigação da natureza humana. Imagino que se pense no romance de hoje como algo sombrio, mas esse período é rico para a ficção. Os fatos de hoje deixam a imaginação mais fácil de alcançar"
Ian McEwan [britânico, autor de "Sábado" e "Reparação"]

Resta torcer para que a próxima Flip leve essa discussão em conta nas próximas edições, correndo o risco de ter de passar a fazer uma seleção com base não mais nas divisões entre poetas, ensaístas, romancistas e jornalistas, mas sim entre os que apóiam Bush e os que não apóiam, os que são contra políticas intervencionistas e os que são a favor, os que gostam de Fidel e os que o odeiam e assim por diante. Aí não vai dar. Que os livros voltem ao primeiro plano.




LIÇÕES DA BOLÍVIA

Está em cartaz em São Paulo um filme muito bacana que, em ano eleitoral, traz elementos interessantes para pensar sobre o papel da televisão nas candidaturas presidenciais. "Bolívia - A História de Uma Crise" acompanha a campanha de Gonzalo Sánchez de Lozada (apelido Goni), em 2002.

Reprodução


Em terceiro lugar nas pesquisas de opinião, o candidato encomendou os serviços de uma empresa norte-americana especializada em marketing político. Resumindo a história, os caras chegaram ao país, ajudaram a transformar um sujeito que muita gente reprovava em Presidente da República e se mandaram. Poucos meses depois, uma grave crise política-econômica e social tomou conta da Bolívia. Lozada caiu e o país se encaminhou para a virada que chegaria em 2005, com a eleição de Evo Morales. A documentarista, então, volta e para registra as transformações. Abaixo, um rápido pingue que fiz com a norte-americana Rachel Boynton, por e-mail.

Por que você decidiu fazer esse filme?
Rachel Boynton -
Eu queria saber que tipo de democracia os EUA estão exportando para o mundo.

Qual era a sua idéia inicial? Afinal, você não sabia o quão trágico seria o fim súbito do governo de Sánchez de Lozada.
Boynton -
Inicialmente, meu plano era seguir três consultores norte-americanos trabalhando em três campanhas presidenciais em três países diferentes. Você sabe, consultores políticos norte-americanos têm trabalhado em campanhas em vários lugares do mundo. Eu queria construir narrativas paralelas e ter o clímax na hora da apuração. Mas a história acabou se sobrepondo, e o filme virou uma outra coisa. Eu nunca poderia ter previsto que esse momento importante da história da Bolivia iria se revelar diante da minha câmera. Mas aprender como reagir e incorporar o inesperado faz parte do processo de construir um documentário.

Como foi o contato com os consultores norte-americanos? O que eles acharam da idéia de filmar a campanha?
Boynton -
Todos foram muito abertos à idéia de serem filmados. Eu realmente acho que eles são bastante idealistas sobre seu trabalho. Acreditam de verdade que estão ajudando os candidatos a ouvir as pessoas e ajudando as pessoas a entenderem os candidatos. E dou a Lozada um imenso crédito por permitir minhas câmeras dentro das salas. Sem isso eu não poderia fazer o filme e acho que ele foi corajoso ao permitir que ele fosse realizado.

Ás vezes, Lozada parece descontente sobre ter de fazer o que os consultores mandam. O que ele disse sobre isso?
Boynton -
Acho que ele entendeu que precisava dizer certas coisas para ganhar a confiança das pessoas. Inclusive coisas nas quais ele não acreditava de coração. Por exemplo, há um momento em que os consultores o encorajam a admitir que cometeu erros no passado. E que esses erros tinham a ver com as reformas de capitalização e privatização que ele havia promovido quando foi presidente nos anos 90. Na verdade, Goni acreditava que tinha feito o melhor para o país com a capitalização. Por isso, falar sobre seus "erros" era difícil para ele. Acho que essa é uma situação que políticos enfrentam em todo o mundo, nas democracias modernas. Você deve dizer o que acredita, e cair nas pesquisas, ou você adapta o discurso para ganhar a eleição?

No Brasil, haverá eleições neste ano. Como em vários lugares da América Latina, a televisão tem um papel muito importante nesse processo. Como acha que esses países poderiam depender menos de campanhas televisivas para construir sua opinião política?
Boynton -
Campanhas de TV criam desafios para uma democracia que funcione bem. Não devíamos ficar satisfeitos com a simplicidade. Temos de exigir respostas complicadas, mas ao mesmo tempo temos de ter paciência para escutá-las. Não podemos esperar que políticos respondam questões em 30 segundos se queremos escutar a verdade.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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