Pensata

Carlos Heitor Cony

19/08/2003

O pau e o gato

Já haviam me dito, mas não acreditei, ou melhor, não dei importância. A turma que se esbofa para tornar a sociedade politicamente correta, que já mudou a designação de mudos, surdos, cegos, impotentes, carecas, gagos etc., chegava até mesmo ao cancioneiro infantil. Não se devia mais cantar o "Atirei o pau no gato", seria politicamente incorreto habituar as crianças a maltratar os animais.

Numa festinha de aniversário do prédio vizinho, ouvi de longe a versão feita para a musiquinha que todos aprendemos na infância. Não deu para entender quase nada, ninguém atirava pau no gato nem dona Chica admirou-se do berro que o gato deu. Era uma coisa complicada, peguei palavras que nada tinham com a letra original, o pau foi substituído por uma flor e o berro final foi trocado: em vez de "miau", o gato dizia "obrigado".

Dona Chica também foi trocada por uma respeitável, uma inacreditável "Dona Francisca". E ela nem ficou admirada do berro que o gato deu, embora agradecendo a flor que lhe fora atirada. Dona Francisca foi modesta como convinha a um personagem politicamente correto. Respondeu com educação: "Não há de quê"

Embora pertença a uma geração que cantou para si e para as filhas a mesmíssima cantiga, Deus é testemunha de que não costumo jogar pau nos gatos. E uma de minhas filhas, que mora em Roma, cidade com fartura de gatos, tem em casa uma porção deles e os trata com desvelo e rações dinamarquesas --que parecem ser as melhores.

Se já tinha motivos bastantes para desprezar o politicamente correto, ganhei mais um --e acredito que definitivo. Gosto de ouvir gatos fazendo miau.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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