Pensata

Carlos Heitor Cony

29/06/2004

Gosto e desgosto

Outro dia, tomei conhecimento de um pesquisador de nossa música popular, que mora no Ceará e tem um acervo particular maior do que o dos museus oficiais e dos entendidos também no ofício. Valorizando indistintamente todos os gêneros e épocas, ele colocou na vitrola, daquelas antigas, com a indecente tuba que parece uma flor de metal envinagrado, o antológico "Pierrô Apaixonado", de Heitor dos Prazeres e Noel Rosa, na gravação de Joel & Gaúcho.

Historiou o contexto: Heitor dos Prazeres, que morava na mesma rua de Noel, em Vila Isabel, o procurou com a música, pedindo uma letra. Era um mulato pobre, vesgo, totalmente desconhecido, mais tarde seria famoso como compositor e pintor primitivo, um dos mais valorizados por sinal. Joel era acadêmico de medicina, já consagrado e ainda não tuberculoso. Fez aquela maravilha que outro dia destaquei numa crônica para a página 2 da Folha: "Um grande amor tem sempre um triste fim, com o pierrô aconteceu assim, levando este grande chute foi tomar vermute com amendoim". (Fabulosa a capacidade de Noel em encontrar rimas, acima dele, só Camões e Bocage).

E o pesquisador cearense pergunta: qual seria o acadêmico de medicina ou de qualquer curso universitário, qualquer compositor saído da classe média de hoje que aceitasse a parceria com um pé-de-chinelo, sem mercado no rádio, na tv e na mídia em geral?

Na mesma linha, o pesquisador repetiu uma reflexão de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta que marcou época. Quando a bossa nova estourou, ele tirou uma foto de sua varanda, onde ao lado havia um edifício em construção. Apontando com a mão, Stanislaw disse que no ano e meio da obra, nunca ouvira um operário cantar ou assobiar qualquer música de sucesso que os rádios e tvs então badalavam.

E deixou no ar esta pergunta: pegue hoje um operário e peça para ele cantar "Garota de Ipanema" ou "O bêbado e o equilibrista". Até hoje me complico com a segunda parte do famoso samba de Tom e Vinicius. Em compensação, sei quem é o irmão do Henfil mas duvido que a turma do salário de R$260 saiba.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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