Pensata

Carlos Heitor Cony

24/08/2004

História mal contada

Cinqüenta anos após a morte de Vargas, tragédia fartamente relembrada pela mídia nos dias que correm, espanta-me o fato de até hoje não ter sido apurado o crime da rua Toneleros que deu partida e pretexto para a crise política que levou o presidente da República ao suicídio.

Basta uma consulta aos dois jornais que mais amplamente cobriram o caso. Um deles, a "Tribuna da Imprensa", da qual uma das vítimas do atentado era dono e principal articulista, e que seria o único alvo da emboscada, publicou declarações do próprio Carlos Lacerda, ainda no hospital onde cuidava do ferimento em seu pé. Disse Lacerda que havia três pistoleiros atirando contra ele, numa fuzilaria infernal. As declarações de Lacerda foram publicadas com destaque na edição do dia seguinte, 5 de agosto de 1954.

O filho de Lacerda, que estava junto do pai no momento dos tiros, disse a mesma coisa: três pistoleiros atirando sem parar. "O Globo", na edição do dia 6, publica um desenho reconstruindo o atentado, mostrando três pistoleiros na rua Toneleros disparando suas armas.

O tiro que feriu o pé de Lacerda era de uma arma calibre 38. Os tiros disparados pelo assassino Alcino (que mataram o major Vaz), eram de uma arma calibre 45. Lacerda teria sido atingido por um outro pistoleiro ou ele próprio, segundo uma versão nascida naquela mesma noite, teria disparado contra o pé, de propósito ou casualmente, coisa que ocorre com frequência aos atiradores circunstanciais. O laudo do hospital que atendeu o jornalista está desaparecido até hoje.

Quando se obteve um nexo entre o atentado e a guarda pessoal de Vargas, a versão original foi esquecida, sepultada pelo IPM da República do Galeão que apurava o caso. O próprio Lacerda mudaria de opinião, dias mais tarde, afirmando que havia um só pistoleiro. Como se vê, o caso foi mal apurado e nele cabem versões que contradizem a história oficial que continua manipulada.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca