Pensata

Carlos Heitor Cony

02/11/2004

A sede de sangue

Comentei outro dia, em crônica publicada na página 2 da Folha de S.Paulo, a sede de alguns leitores pelo sangue alheio. Até certo ponto, esta sede está se alastrando pela sociedade inteira, que diante de qualquer acontecimento doloroso ou doloso, exige veias dilaceradas e borbotões de sangue dos culpados, havendo ou não havendo culpados na questão.

O ideal seria que não ocorressem desastres nem dramas, como o da morte do zagueiro Serginho, que teve uma parada cardíaca em campo, durante uma partida de futebol, e morreu logo em seguida. Pode ser que tenha havido incúria do clube, do departamento médico do São Caetano ou mesmo da federação paulista de futebol, dando condições de jogo a um cardiopata -- o que parece ser o caso do jogador.

Evidente que haverá uma investigação a respeito, e se houver culpados, que eles sejam responsabilizados de acordo com a lei. O que não se compreende é esta cobrança antecipada, na base do sangue que deve ser lavado com sangue. Neste particular, a mídia é cúmplice na sede de sangue por sangue, no pressuposto de agir em bem da sociedade, quando, muitas vezes, se trata apenas da concorrência entre veículos e profissionais do mesmo ofício.

Certo, é um direito da sociedade saber de tudo. Mas é problemática a apreensão universal desse "tudo", de todos os atos lícitos ou ilícitos que acontecem no seio de uma sociedade. E tem mais: nem sempre os profissionais da mídia são tecnicamente indicados ou aparelhados para matar a sede de sangue que pretende lavar outros sangues.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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