Pensata

Carlos Heitor Cony

07/12/2004

Bloco do eu sozinho

Um amigo andou fazendo uns cálculos que nunca me passaram pela cabeça. Pegou o meu habeas-data fornecido pelo Dops, a tabela dos salários do pessoal da polícia e de outros órgãos que se dedicaram à repressão no período de 64 a 73.

Levantou a carga horária que foi cumprida pelos funcionários da Viúva nos 12 IPMs que respondi, nas seis prisões em que me trancafiaram, nos deslocamentos aéreos e terrestres, nos agentes que seguiam meus passos aqui e no exterior, na administração burocrática de toda essa gente. Obteve um resultado que me espantou: em moeda corrigida, dava R$ 1.548, 630.

Fui o primeiro a estranhar a quantia calculada pela Comissão de Anistia com que o Estado, conhecido também como "A Viúva", me indenizaria. Pensava que era muito. E não entendi bem, apesar de meu advogado ter explicado a lei votada no Congresso sobre o assunto. Fiquei sabendo que deveria ganhar mais do que pretendem me dar.

Ao me habilitar para a indenização legal que a Viúva me deve, o advogado apresentou documentos ( livros, sentenças, fotos, recorte de jornais da época) provando que perdera empregos, vivera fora do país, tivera a casa depredada, passara 23 anos sem condições de escrever meus livros, a carreira de escritor interrompida, enfim, o diabo que a Viúva fez comigo e com milhares de brasileiros, muitos dos quais foram mortos e torturados.

Minha mãe morreu em 1973, amargurada com a situação que o filho atravessava. Minhas filhas foram ameaçadas de seqüestro e estupro, no próprio colégio em que estudavam. E meu crime fora apenas o de opinião, expressa em jornal. Nunca pegara em armas nem participara de nenhum movimento coletivo. Fui e ainda sou do bloco "Eu sozinho".
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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