Pensata

Carlos Heitor Cony

11/01/2005

Carne assassina

Não, não me refiro àquele inimigo da alma, a carne, que junto com o diabo e o mundo renunciamos no momento em que somos batizados. O padre pergunta ao recém-nascido se, para ser um futuro cristão, renuncia ao diabo, ao mundo e à carne. Como o batizando ainda não fala, fala o padrinho, que renuncia ao diabo, ao mundo e à carne em nome da criança.

A carne a que me refiro é a carne mesmo, de boi, porco, cabrito, cordeiro ou de qualquer outro animal que tenha carne vermelha, como a nossa.

Descobriram de repente que é uma carne que faz mal, uma carne assassina. Tal como o fumo, que tira 15 minutos de vida a cada cigarro que se fuma. (Dentro deste cálculo, para gáudio de muitos, eu já devia ter morrido há uns 40 anos, nem sei como continuo vivo, mais pra lá do que pra cá, mas vivo).

Quando ministro da Saúde, o Zé Serra impôs aquelas figurinhas nos maços de cigarro, para desestimular os fumantes. Homens cadavéricos, morrendo em CTIs, em cadeiras de roda após enfartes violentos, e até mesmo impotentes sexuais, valeu tudo, todas as mazelas físicas e espirituais para escancarar os malefícios do ato de fumar.

Com a carne vermelha acontecerá o mesmo, mais dia, menos dia. Ela não será proibida, lobby dos produtores, frigoríficos, restaurantes etc. Mas a cada bife que recebermos em nossa mesa, virá alguma forma de advertência, uma imagem espetada em cima da carne, estampando um caixão de defunto, um cemitério, uma caveira com as tíbias cruzadas.

Confesso que ficarei impressionado. Nem por isso deixarei de apreciar um bom bife, uma picanha grelhada na brasa. Sem prazer, a vida não vale a pena, mesmo que a alma não seja pequena.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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