Pensata

Carlos Heitor Cony

22/03/2005

Meu censor predileto

Somente um monstro, um débil mental ou um criminoso se atreveria a defender a censura. Sou, de bom grado, este monstro, este débil mental, este criminoso. Quando exerço a profissão sob censura policial ou política, procuro ser mais inteligente ou esperto do que os censores, o que nem sempre consigo, apesar do nível baixíssimo dos censores.

Mas sempre que posso, voluntariamente, me submeto à censura de amigos ou entendidos em determinado assunto. Gosto até de receber censuras, se não me tornam melhor, me tornam menos responsável, tenho sobre quem despejar ou dividir os muitos erros que cometi e continuo cometendo.

Exemplo: sou refratário atávico ao rigor histórico, qualidade que herdei do meu pai, que nunca foi a Paris mas falava como se tivesse nascido por lá. O que não o eximia de colocar a tumba de Napoleão, que está no Invalides, dentro da Notre-Dame.

Minha grande diferença, e por isso mesmo meu melhor e mais constante censor, é o Ruy Castro. Ele não perdoa a versão que dei, em livro sobre a Lagoa aqui no Rio, do famoso Fla-Flu que ficou na história como o "Flu-Flu da Lagoa". Segundo o Ruy, eu fiz um autêntico samba do crioulo doido, mudando não apenas o lance decisivo da partida (um gol feito com a mão por Valido, argentino que jogava no Flamengo) mas o próprio resultado do jogo.

Honra seja feita ao meu censor. Consagrado como biógrafo, ele não se deixa encantar por detalhes comuns nas biografias e perfis feitos por aí. "Fulano nasceu em Belo Horizonte, na rua dos Tamoios, 134, fundos". O rigor histórico do Ruy dispensa essas firulas, vai na veia dos fatos e pessoas.

Semana passada, submeti ao meu censor predileto a crônica que publiquei na Folha, falando do meu compositor norte-americano preferido, Nacio Herb Brown.

Milagre: Ruy limitou-se a corrigir a grafia de um nome próprio ( em lugar de Arthur, digitei Arhur). Como se pode notar, a censura até que às vezes comete a façanha impossível de me melhorar.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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