Pensata

Carlos Heitor Cony

29/03/2005

Casas de pasto

A sociedade de consumo criou regras indispensáveis a que estamos submetidos e que, em princípio, foram feitas, em primeiro lugar para nos beneficiar, e em decorrência, beneficiar a todos.

Uma dessas regras estabelece que o freguês tem sempre razão. As exceções não contam mas, em princípio, se reclamamos do bife que está duro demais, o garçom providencia um bife melhor. Se recusamos um chope por estar azedo, trazem-nos outro. Em linhas gerais, o mesmo prevalece em outros departamentos. Se compramos uma camisa e ao usá-la descobrimos que ela está rasgada em algum ponto, a loja nos pede desculpa e nos dá outra.

A mesma regra (a sagrada, a definitiva razão do freguês) volta e meia prevalece para os jornais, emissoras de rádio e TV. Um programa na telinha leva meses para ser bolado e definido. Profissionais experimentados, pesquisas desinteressadas, dinheiro a rodo produzindo o melhor --tudo se compacta numa cena ou num determinado quadro. Meia dúzia de fregueses reclamam, botam a boca no mundo, escrevem cartas aos leitores.

Pronto. Está armada a confusão. Muda-se texto, atores, músicas, cenário, figurino. Daí a constatação: de hora em hora, Deus piora. E com Ele, tudo piora.

O mesmo acontece em outros departamentos. O freguês deseja ver, na TV, no rádio e no jornal, a sua verdade, na maioria das vezes, a sua própria tolice. Espanta-se ao verificar que há verdades e tolices diferentes das suas. Se estivesse numa casa de pasto, mandaria o bife de volta para a cozinha. Não podendo fazer isso, reclama da falta de credibilidade na TV, no rádio e nos jornais. Prefere continuar acreditando no que sempre acreditou: está sempre com a razão.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca