Carlos Heitor Cony
19/04/2005
Lembro do cara que encontrei, na praça do Jóquei, vestido como um profeta de filme do Glauber Rocha, fazendo um discurso resumido a uma única frase: "Eu sou a Porta!" (A maiúscula e o ponto de exclamação ficam por minha conta, pelo menos, era assim que o entendia).
Desde Demóstenes, Cícero, Mirabeau e Bossuet, considerados grandes oradores da história, não creio ter aparecido nada igual. A convicção com que ele se declarava a Porta não deixava margem para dúvida. Nem precisava especificar que Porta era, para onde levava --se é que levava a alguma parte. Creio que a nenhuma: ele se bastava em ser a Porta.
Infelizmente, esses tipos estão rareando. Com exceção de alguns pregadores religiosos, que o povo costuma chamar de "bíblias", porque sempre estão lendo ou comentando algum trecho do Livro dos Livros. O orador de rua encontrou praça melhor e tecnologicamente mais avançada. Refugiaram-se na internet e, em tese, passaram a dispor de uma platéia universal, a baixo custo. Advertem, comentam, criticam, ameaçam, profetizam e corrigem o mundo, não deixando pedra sobre pedra em alguns casos, em outros juntando pedras para a construção da sociedade ideal.
Ao contrário dos oradores de rua, não tenho atração nem paciência para escutá-los. A menos que um desses internautas de carteirinha se declare, convicta e simplesmente, que é a Porta.
A porta e a internet
Sou vítima de uma atração inexplicável. Quando passo por uma rua e vejo um sujeito falando às massas, por mais apressado que esteja, não resisto: paro e fico ouvindo. Às vezes disfarçadamente, para não ser tomado como platéia. Às vezes ostensivamente, sobretudo quando o sujeito não tem um ouvinte sequer, e minha presença, acrescida de minha atenção, justifica o orador e distrai o transeunte que sou eu.Lembro do cara que encontrei, na praça do Jóquei, vestido como um profeta de filme do Glauber Rocha, fazendo um discurso resumido a uma única frase: "Eu sou a Porta!" (A maiúscula e o ponto de exclamação ficam por minha conta, pelo menos, era assim que o entendia).
Desde Demóstenes, Cícero, Mirabeau e Bossuet, considerados grandes oradores da história, não creio ter aparecido nada igual. A convicção com que ele se declarava a Porta não deixava margem para dúvida. Nem precisava especificar que Porta era, para onde levava --se é que levava a alguma parte. Creio que a nenhuma: ele se bastava em ser a Porta.
Infelizmente, esses tipos estão rareando. Com exceção de alguns pregadores religiosos, que o povo costuma chamar de "bíblias", porque sempre estão lendo ou comentando algum trecho do Livro dos Livros. O orador de rua encontrou praça melhor e tecnologicamente mais avançada. Refugiaram-se na internet e, em tese, passaram a dispor de uma platéia universal, a baixo custo. Advertem, comentam, criticam, ameaçam, profetizam e corrigem o mundo, não deixando pedra sobre pedra em alguns casos, em outros juntando pedras para a construção da sociedade ideal.
Ao contrário dos oradores de rua, não tenho atração nem paciência para escutá-los. A menos que um desses internautas de carteirinha se declare, convicta e simplesmente, que é a Porta.
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Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças. E-mail: cony@uol.com.br |
