Pensata

Carlos Heitor Cony

03/05/2005

O progresso e a fossa

Deve acontecer com todo mundo. Em momentos de fossa, qualquer tipo de fossa, o pensamento positivo mais eficaz é a comparação que qualquer um de nós pode fazer com o passado, não o passado remoto, mas o recente, digamos, de 15, 20 anos atrás.

Não havia internet, computador nem celular. Com viveríamos sem isso? Bem verdade que a grande maioria ainda não teve acesso aos três símbolos da modernidade. Mas quando se pensa que até o século 19 não havia eletricidade, precisava-se de velas e lamparinas para iluminar a noite, e o cavalo era o meio de transporte mais confortável e rápido, não mais se poderia invejar nem mesmo os grandes do mundo, como Napoleão, Bismark, Garibaldi e a primeira geração dos Rothschild.

Recuando mais ainda, lembremos que Júlio César chorava quando pensava que Alexandre, mais moço do que ele, já havia conquistado todo o mundo conhecido. Mas os dois não tinham sequer papel higiênico para suas necessidades.

Jesus Cristo teve famoso triunfo quando entrou em Jerusalém, pouco antes de sua paixão e morte. Mas estava montado num jumento atrofiado, como todos os jumentos daquela região. E fez o seu mais importante sermão do alto de uma montanha, sem uso de alto-falantes ou microfones --mesmo assim foi ouvido e continua ouvido até hoje.

Meditar sobre as deficiências do passado pode curar a fossa do presente. No meu caso, às vezes cura, às vezes não. Depende do tipo de fossa. Quando penso no milhão de dólares que nunca tive, louvo a lâmpada elétrica que acendo em minhas noites e me consolo. Os milionários do passado não a tiveram.

Mas quando penso nas mulheres que desejei e não tive ou perdi, mergulho na fossa e descubro estranha, inexplicável doçura nela.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca