Pensata

Carlos Heitor Cony

09/05/2006

Deformação cultural

O novo Secretário de Cultura do Rio de Janeiro está preocupado em valorizar as manifestações mais populares daquilo que, grosso modo, pode-se chamar de cultura. Fiel às suas origens, substituiu o maestro Edino Krieger da presidência do Museu da Imagem e do Som por uma neta de Cartola. E nomeou a bisneta de Donga para outro cargo de sua secretaria.

Sem entrar no julgamento de valor da neta e da bisneta de dois grandes compositores populares, a atitude do novo secretário tem alguma coisa de nepotismo, não de nepotismo de sangue mas um tipo de nepotismo cultural inédito até agora na administração pública. O mesmo secretário promete procurar as emissoras de rádio para darem espaço ao "som" de Monarco, Dona Ivone Lara "e tantos outros".

Novamente sem entrar no mérito dos escolhidos (pessoalmente, sou fã incondicional de Monarco), creio que a função do Estado está mais acima da concorrência comercial dos diversos gêneros da nossa música. As emissoras programam-se de acordo com o mercado. Ao Estado competiria complementar as manifestações musicais e culturais que não se enquadram na grade de uma programação destinada à onda ditada pelo momento.

As emissoras não abrem espaço para gêneros que somente o Estado poderia bancar. Não se ouvem nos rádios as canções de Carlos Gomes: uma delas, por sinal, serviu de trilha sonora para o último filme Woody Allen, "Match Point". Nunca ouvi no rádio o "Batuque", de Nepomuceno, cujo ritmo popular nada fica a dever aos melhores momentos de Ary Barroso e Tom Jobim.

Cultura é um conceito abrangente que deixa de ser cultura quando se limita a manifestações setorizadas, por melhores e mais dignas que sejam.
Carlos Heitor Cony, 80, é membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000. Escreve para a Folha Online às terças.

E-mail: cony@uol.com.br

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