Pensata

Kennedy Alencar

16/01/2004

Presidente, a Alca é o que importa

O fichamento dos turistas americanos (impressão digital mais foto) ainda é o assunto do momento. Chegou a merecer do presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma importância que não tem, a ponto de ele pedir ao colega norte-americano, George W. Bush, algo que sabe que não será atendido: o fim dos vistos para brasileiros e americanos em visita aos dois países.

Esse assunto é inglório para colunistas. É muito mais fácil assumir a fácil defesa da reciprocidade, a idéia de que se trata de uma questão de honra nacional ou o bordão simplório de que basta o Brasil, a sua população e seu presidente quererem ser grandes para que isso aconteça.

Feliz e infelizmente, a realidade é diferente.

Na cobertura de duas guerras, Kosovo e Afeganistão, experimentei a dor e a delícia de ser brasileiro. Por pertencer à periferia, sempre foi mais difícil marcar entrevistas com autoridades locais e participar de viagens arriscadas com exércitos. As atenções dos dois lados, de quem ataca e de quem é atacado, estavam sempre voltadas para as TVs americanas e a mídia escrita da Europa.

Mas, por ser do Brasil, um país que construiu uma imagem de alegria e de cordialidade perante o resto do mundo, sempre foi mais fácil conseguir moradia de pessoas solidárias a um colega do terceiro mundo e contar com a simpatia de um soldado raso e da população bombardeada pelo poderio militar ocidental.

Felizmente, o Brasil não tem motivos para exigir impressões digitais de americanos, nem de ter um controle quase fascista de suas fronteiras. Além de perda de tempo, energia e dinheiro, uma medida antipática só afeta essa imagem de alegria e cordialidade, da qual os brasileiros devem ter muito orgulho.

Já os EUA, infelizmente, têm motivos de sobra para adotar medidas paranóicas e antipáticas. O país dos americanos, até pela incompreensão e arrogância de alguns de seus mandatários, sofre ameaças verdadeiras, até de ataques nucleares de pequena escala.

Nesse contexto, de que vale a aplicar o princípio da reciprocidade para exigir impressões digitais e fotos de americanos que vêm ao Brasil? Que um procurador e um juiz achem que isso é defesa soberania, dá até para entender, apesar de não concordar. Que um governo como o de Lula, um presidente do qual qualquer cidadão pode se orgulhar, encampe a mesma coisa, é bastante criticável.

Lula perdeu tempo ao debater com Bush a exigência dos vistos para brasileiros e americanos. O importante seria se concentrar na negociação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), para obter dos EUA uma concessão econômica de peso, que gere empregos, aumente a renda dos trabalhadores, faça crescer o mercado consumidor e ajude a melhorar a vida dos brasileiros a ponto de algum dia este país poder ser orgulhar de não ter gente faminta, crianças fora da escola e nenhum analfabeto adulto. Não há discussão no continente mais importante do que a Alca.

O tamanho e a importância de um país e de um presidente dependem da capacidade de sua sociedade (não só de seu presidente) entender o que de fato é interesse nacional e, assim, elaborar uma estratégia para atingir esses interesses.

É algo muito mais complicado do que vontade política ou frases inteligentes de brilhantes polemistas. Lula, por sua história política e de vida, deveria compreender que sua política externa precisa ir além do bordão da "vontade política", das divertidas polêmicas e da correta pregação por um efetivo combate à fome em escala mundial.
Kennedy Alencar, 39, é colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre os bastidores da política federal, aos domingos.

E-mail: kennedy.alencar@grupofolha.com.br

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