Pensata

Kennedy Alencar

25/06/2004

O engenheiro Brizola e o ator Reagan

Vez ou outra dizemos que é coisa de brasileiro perdoar os mortos e melhorar suas biografias. Aconteceu com o engenheiro Leonel de Moura Brizola, que morreu aos 82 anos nesta semana (segunda, 21/06). Felizmente, não estamos sozinhos. É da natureza humana --e aconteceu também com Ronald Reagan, morto aos 93 anos no início do mês (sábado, 05/06).

Em tempo de contestação à coerência do PT, acusado de fazer no governo federal tudo o que criticava antes de chegar ao poder, Brizola foi apontado como uma espécie de rei da coerência, o político que nunca traiu seus ideais, um homem de coragem.

No momento em que um republicano, o presidente dos EUA, George W. Bush, piora o mundo com seu radicalismo algo taleban, Reagan foi lembrado como o conservador que enterrou o socialismo sem desestabilizar o planeta, o presidente amado por uma simpatia diferente mas tão sedutora quanto a de John Kennedy.

Parte dessas avaliações é verdadeira. Mas outra parcela reflete uma espécie de vingança do espírito de nosso tempo.

Para criticar Lula no que ele nos desaponta, vemos em Brizola a ousadia de mudar-tudo-o-que-está-aí que o petista não tem. Para esquecer Bush, descobrimos um republicano com pinta de caubói que deu certo e que sabia o que fazia. Para ferrar Lula e Bush, endeusamos Brizola e Reagan.

O grande momento de Brizola foi 1961. O então jovem governador do Rio Grande Sul criou a "Cadeia da Legalidade". Prometendo resistência armada, abortou com coragem e ousadia, reais no caso, a tentativa de golpe que se consumaria três anos depois.

Depois de 1961, foi emocionante ver o retorno do exílio de um líder carismático, que vivia às turras com a maior rede de TV do Brasil quando era comum ouvir em manifestações o refrão "O Povo Não é Bobo, Abaixo a Rede Globo". Ele seria ainda governador do Rio de Janeiro por duas vezes (1983-1986 e 1991-1994), mas já não era mais o mesmo, nem quando parecia presidenciável imbatível.

As idéias de Brizola envelheceram mais rapidamente do que ele,a ponto de fazê-lo perder duas eleições presidenciais e outras disputas. No período pós-exílio, ele foi de uma incoerência assustadora, com ingredientes de oportunismo.

Flertou com a prorrogação do mandato presidencial do general João Baptista Figueiredo, no estertor da ditadura militar. Deu apoio a Fernando Collor de Mello, político que dispensa maiores comentários. Aliou-se e afastou-se do PT. E terminou a vida política acusando Lula de "traidor" e fazendo reuniões com o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, um herdeiro direto da ditadura militar que tirou Brizola de cena no seu auge.

Já Reagan, o 40º presidente dos Estados Unidos (1981-1984 e 1985-1988), ganhou quase todo o crédito por "realizações" que não foram apenas suas. Numa espécie de ranking dos que contribuíram para a queda do regime que se instalara em 1917 na Rússia, Mikhail Gorbatchov, João Paulo 2º e Margaret Thatcher ocupam, respectivamente, as três primeiras posições no pódio.

Os grupos radicais e minoritários fundamentalistas que assustam o mundo com decapitações monstruosas, contrariando o próprio islamismo, deveriam pagar royalties às políticas que Reagan adotou para derrotar um já combalido inimigo vermelho. Osama Bin Laden, por exemplo, era um "amigo" dos EUA no Vietnã soviético no Afeganistão (1979).

Sem dúvida, Brizola e Reagan são personagens fundamentais para entender o Brasil e os EUA. Merecem o respeito e a reverência que devem ser dedicados aos mortos. Mas não é justo com a História fazer concessões a obituários maquiados.

Para não dizer que não falei da flores

Quem conviveu de perto com Brizola diz que ele era uma figura "cativante" no trato pessoal. Luiz Gushiken, secretário de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, foi uma dessas pessoas.

Na campanha presidencial de 1998, quando Brizola foi vice de Lula em mais uma disputa vencida por Fernando Henrique Cardoso, Gushiken viajou e conversou muito com o velho caudilho. Na eleição de 1989, ano em que Brizola apoiou Lula contra Collor no segundo turno, também.

"Tive a honra de ter tido uma convivência próxima com o Brizola nas campanhas eleitorais de 1989 e de 1998. Vi nele um sentimento patriótico como raramente se vê num político brasileiro. Ele tinha isso de um modo muito forte".
Kennedy Alencar, 39, é colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre os bastidores da política federal, aos domingos.

E-mail: kennedy.alencar@grupofolha.com.br

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