Pensata

Kennedy Alencar

11/05/2007

Pela descriminalização do aborto

"Ninguém é a favor do aborto. A pergunta é: a mulher deve ser presa? Deve morrer?" A declaração é do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Defensiva, retrata como é difícil debater a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação (há um projeto em tramitação no Congresso). Pertinente, traz indagações que merecem discussão.

Lula tem razão quando diz que ninguém é a favor do aborto. Colocar a discussão nesses termos é transformar num Fla-Flu um grave problema de saúde pública que atinge sobretudo os mais pobres. É simplificar nuances legais, morais, éticas, religiosas.

Segundo dados do Ministério da Saúde, 220 mil mulheres procuram hospitais públicos por ano para tratar de seqüelas de abortos clandestinos. Há estimativas extra-oficiais de que sejam realizados mais de um 1 milhão de abortos por ano no Brasil.

De 1941, a lei brasileira só permite a interrupção da gravidez em dois casos: se resultado de estupro e na hipótese de risco à vida da mãe. Fora disso, é crime. A pena pode chegar a três anos de prisão.

Os ministros José Gomes Temporão (Saúde) e Nilcéa Freire (Políticas para as Mulheres) defendem a discussão e a eventual aprovação no Congresso da legalização do aborto até 12 semanas de gestação --período até o qual, segundo cientistas, não há relação entre os neurônios.

Juridicamente, a morte cerebral é entendida como o fim da vida. Os defensores da legalização do aborto até 12 semanas, por analogia, argumentam que a vida começaria com a atividade cerebral. Daí a proposta desse prazo-limite, já adotado em países que legalizaram a interrupção da gravidez.

Para o Vaticano e outro grupo de cientistas, a vida começa na concepção (fecundação do óvulo pelo espermatozóide). E essa vida dura até seu declínio natural. O papa, portanto, não admite aborto, inclusive nos casos previstos na lei brasileira. E também é contra a eutanásia.

A Igreja Católica, o papa Bento 16 e qualquer cidadão contrário ao aborto têm o direito de defender seus pontos de vista e de lutar para que a legislação os contemple. As pessoas que desejam a legalização do aborto até 12 semanas de gestação também.

Nenhuma das partes possui o direito de impor à outra o seu desejo. Numa democracia laica, essa decisão cabe ao conjunto da sociedade e aos legisladores _respeitando-se, sempre, o direito das minorias.

Mais: não será a legalização (ou descriminalização) do aborto até 12 semanas que obrigará as seguidoras de Bento 16 a interromper a gravidez. Não parece razoável supor que o número de abortos vá aumentar ou diminuir em função dessa eventual alteração da lei.

Pesquisa Datafolha realizada em março mostrou que 65% dos entrevistados não desejam mudar a atual legislação do aborto. Ou seja, é mínima a chance de modificação via plebiscito. Ao longo do debate, talvez possa haver alteração desse quadro, mas não é o provável.

Seria possível, entretanto, mostrar que a ciência avançou a ponto de poder, por exemplo, detectar uma má-formação do feto que inviabilize a sua vida fora do útero. Nessa hipótese, é justo impor a gestação à mulher? Enfim, um plebiscito daria pelo menos a chance de a população ficar mais esclarecida.

Mas Bento 16 e a Igreja Católica não aceitam plebiscito. Acusam os defensores da descriminalização do aborto de serem defensores da morte. Dizem que são a favor da vida e ponto, despejando dogmas com cartesianismo fundamentalista.

Ora, interdição de debate não dá. Tampouco pressão política sobre o governo e o Congresso na base de ameaça de excomunhão.




Lula e o papa

Lula disse a ministros que achou Bento 16 "mais simpático" do que parecia pela TV e do que ele próprio imaginara. Os dois se encontraram na quinta de manhã em São Paulo. Em relatos ao voltar a Brasília, o presidente disse que o papa era "muito alemão", no sentido de formal. No entanto, afirmou que, ao longo do encontro, Bento 16 se descontraiu e mostrou afabilidade que o surpreendeu positivamente.

Lula não alimentava alta expectativa em relação à visita do papa. Na visão da cúpula do governo, Bento 16 não tem o peso histórico do antecessor, João Paulo 2. Ou seja, não teria tanta importância política. Lula tinha em mente mais a imagem de Joseph Ratzinger, o cardeal conservador nomeado em 1981 por João Paulo 2º para a Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Desde que foi eleito papa há dois anos e adotou o nome de Bento 16, Ratzinger tem combinado o rigor católico a uma imagem pública mais light.

No encontro, Lula disse ao papa que manteria as posições laicas do Estado brasileiro. Foi o jeito polido de recusar a versão de um tratado entre a Igreja Católica e Brasil proposto no ano passado. O Itamaraty julgou que o acordo contrariava o princípio de separação entre Igreja e Estado. Em março, o Brasil enviou ao Vaticano proposta de texto mais branda. A eventual assinatura desse tratado dependerá, do ponto de vista brasileiro, da concordância da Santa Sé com o teor do texto.
Kennedy Alencar, 39, é colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre os bastidores da política federal, aos domingos.

E-mail: kennedy.alencar@grupofolha.com.br

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