Pensata

Kennedy Alencar

15/06/2007

Impressões indianas

Uma semana em qualquer país é pouco tempo para conhecê-lo. Relatarei, portanto, impressões de uma viagem rápida à Índia, na qual a missão principal foi acompanhar a visita de três dias do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país.

A descrição mais ouvida, especialmente de empresários e diplomatas brasileiros com alguma quilometragem de Índia: "Isto aqui é outro planeta". Mais uma: "Não há comparação com o Brasil, a miséria aqui é muito maior".

Ao final de uma semana, a primeira observação me pareceu equivocada. A segunda, exagerada.

Lula Marques/Folha Imagem
Indiano cuida de vacas próximo ao Taj Mahal
Indiano cuida de vacas próximo ao Taj Mahal

Chamar a Índia de outro planeta soa a provincianismo de parte da elite brasileira, tão "antenada" com os Estados Unidos e a Europa, tão certa da supremacia de seu modo de vida ocidental.

Berço de uma das civilizações mais antigas do mundo, a hindu, a Índia tem ainda forte influência das culturas islâmica e britânica. Em Goa, litoral oeste, há forte herança cultural da colonização portuguesa.

A Índia fica aqui no planeta Terra mesmo. Sua riqueza cultural é diversa, impressionante, forte. Das mais belas do mundo.

No Brasil, uma das linhas de pobreza estima em 40 milhões o número de miseráveis --público atendido pelo Bolsa Família. A população aproximada do Brasil atualmente é de 190 milhões. Ou seja, quase 20% de miseráveis por esse critério.

Integrantes do governo indiano dizem que há cerca de 260 milhões de miseráveis no país --pessoas que sobrevivem com um dólar ou menos por dia. A população é de mais de 1,1 bilhão de habitantes. Logo, um percentual de miseráveis na casa dos 25%.

Em Nova Déli, existem bairros nobres e "limpos", como em São Paulo e no Rio de Janeiro. Há ainda as vizinhanças pobres e "sujas", como nessas duas grandes cidades brasileiras.

No caminho para o Taj Mahal, na cidade de Agra, a 200 quilômetros da capital indiana, passa-se por uma imensidão de pobreza, muito parecida com a miséria das grandes periferias de São Paulo, da Baixada Fluminense, do complexo de favelas do Alemão no Rio.

A olho nu, a miséria parece bastante semelhante nos dois países.

Seguem notas elaboradas durante a viagem à Índia. Parte foi publicada na versão impressa da Folha. O conjunto, porém, dá um ligeiro panorama da visita de Lula e das impressões de um jornalista que viu o país asiático com encantamento e uma nem sempre bem-sucedida vigilância ao etnocentrismo cultural. Há fotos do repórter Lula Marques, um tremendo companheiro de viagem.

Boletim do trânsito

Lula Marques/Folha Imagem
Trânsito caótico nas ruas de Nova Déli, na Índia
Trânsito caótico nas ruas de Nova Déli, na Índia

O trânsito é caótico em Nova Déli, a capital indiana. Irritantemente, as buzinas tocam o tempo inteiro. Mas o trânsito flui, por incrível que pareça.

Motoristas mudam de faixa sem dar sinal. Aproximam-se muito da traseira e da lateral dos outros carros. Alguns recolhem o retrovisor externo, de tão espremidos nas ruas. Outros simplesmente removem esse equipamento e usam apenas o retrovisor interno.

Em Nova Déli, a regra é a mão inglesa: os carros, com o volante à direita, trafegam pela esquerda, como outros país de colonização britânica.

Boletim do tempo

No sábado 2 de junho, a temperatura em Nova Déli bateu o recorde do ano: 44,1 º. O ar seco diminuía a sensação de calor, mas aumentava ardência dos olhos e a secura dos lábios. Quando ventava, era como ligar um secador de cabelos e apontá-lo para o rosto.

Em dias de temperatura mais amena no verão da capital indiana, a máxima ficava em 40º, 42º. Mínimas nunca inferiores a 30º. Nem de madrugada.

Procura-se noiva 1

Domingo, 3 de junho. Nos classificados dos jornais indianos, há uma seção para procura de noivas. Um anúncio no "Hindu" dizia que uma "família racionalista hindu" que "não acredita em sistema de castas e horóscopo" procurava noiva para o filho de 33 anos, "alto" e com bom emprego no exterior.

Procura-se noiva 2

O anúncio descrevia as características desejáveis da moça: entre 26 e 28 anos, 1,65m, fluente em inglês, "adoradora do lar" com "tradicionais valores indianos e de boa família" para "casamento e jornada juntos pela vida".

Programa impossível

Integrantes do governo indiano atribuem ao Bolsa Família a popularidade de Lula, que, para espanto deles, permanece alta após escândalos.

Na Índia, 260 milhões do 1,1 bilhão de habitantes estão abaixo da linha da pobreza. Autoridades do país dizem que um programa similar seria muito difícil de ser implementado. O Bolsa Família atende a 11 milhões de famílias, cerca de 40 milhões de pessoas.

Metas e metas

A Índia cresceu 8% em média nos últimos três anos. Deve crescer 9% em 2007 --ano-fiscal de abril a abril. A meta do governo é atingir 10% antes de 2012. No Brasil, as metas do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) são exatamente a metade das indianas. Para 2007, o PAC prevê elevação do PIB (Produto Interno Bruto em 4,5%. Entre 2008 e 2010, 5%.

PAC indiano

Entre 2005 e 2025, o governo da Índia deseja crescimento médio anual de 7,3%. Seria suficiente para superar a Alemanha, pulando do 12º para o 5º maior mercado consumidor do mundo. Do 1,1 bilhão de habitantes atuais, a Índia considera que apenas 50 milhões compõem uma classe média com bom poder aquisitivo. O país espera decuplicar esse contigente até 2025.

Aids e estrangeiros 1

Na hora de pedir visto, o estrangeiro que deseja permanecer mais de um ano na Índia deve se comprometer a realizar um teste, no prazo de um mês, para saber se possui o vírus HIV. Se for soropositivo, deve deixar o país. Os Estados Unidos também fazem exigência parecida. O Brasil não.

Aids e estrangeiros 2

ONGs consideram essa exigência um estímulo ao preconceito e à estigmatização. Autoridades indianas afirmam que uma lei de 1989 a estabeleceu porque o país não tem como arcar com tratamento gratuito para todos os soropositivos. No Brasil, o tratamento é gratuito e tem sido procurado por estrangeiros.

Veg e non-veg

Nos restaurantes, o cardápio tem duas grandes divisões. Pratos vegetarianos e não-vegetarianos. Estatísticas da Índia estimam que 40% da população seja vegetariana. Mas parcela dos "vegetarianos" não é tão radical. Há "licença" para comer alguns produtos de origem animal (ovos e leite, por exemplo).

Pimenta com gosto

Para o gosto médio brasileiro, a comida indiana é muito quente, muito apimentada. Até mesmo quando se pede o mínimo de pimenta possível, uma boa ardência está garantida.

Alternativa para estômagos mais sensíveis: restaurantes chineses, que são bons nos hotéis da capital indiana.

Endereço de expatriados

Um dos bares que reúnem expatriados de todos os lugares em Nova Déli é o Urban Pind. Endereço: N-4, N Block Market, Greater Kailash-1. Boa música para dançar. E uma imperdível pizza de frango com... pimenta. Lembrete: peça sempre "less spicy as possible". Ou mande brasa.

Livre grasnar

Com a diminuição da violência na Caxemira, território disputado por Índia e Paquistão, os gansos e patos selvagens estão voltando em maior número aos lagos gelados da região. Motivo: os lagos puderam ser limpos. O acúmulo de lama diminuira o volume da água e os alimentos dos pássaros (vegetação e peixes).

Banquete (careta) indiano

O último compromisso de Lula na movimentada segunda 4 de junho foi um banquete oferecido pelo presidente Abdul Kalam. Os indianos perguntaram detalhes sobre os carros flex e programas sociais, como o Bolsa Família e o Pronaf.

Lula chegou a aconselhar o embaixador da Índia no Brasil, Hardeep Singh, a comprar um automóvel bicombustível para teste. O ministro Miguel Jorge (Desenvolvimento) interveio. Disse que falaria com montadoras do Brasil para ceder um carro ao embaixador.

O presidente disse ter gostado da comida, um cardápio indiano típico, com versões vegetariana e não-vegetariana. De bebida, apenas sucos e refrigerantes _nada alcóolico.

Made in India

Lula ganhou dois vinhos indianos de presente. Também recebeu uma garrafa de rum, curiosamente, de uso privativo das Forças Armadas. Quem experimentou diz que o rum é de primeira. O vinho, apenas honesto.

O quê?

Quando Lula contou em discurso a empresários que, na infância, viajara 13 dias de pau-de-arara do Nordeste a São Paulo, o intérprete oficial tascou "traseira de caminhão". Jornalistas indianos ficaram curiosos e perguntaram aos brasileiros o que era exatamente um pau-de-arara.

Aviação e cultura

O Brasil pediu que a Índia revogasse taxação de 18% de importação de aviões para executivos, do tipo Legacy, da Embraer. Lula e o primeiro-ministro Manmohan Singh acertaram ainda a realização de festivais culturais da Índia no Brasil e vice-versa ainda neste ano.

Duro de matar

Bollywood, a Hollywood indiana, fechou acordo com grandes estúdios dos EUA, como Fox, Sony e Disney. Em março, houve mostra de filmes indianos em São Paulo, com destaque para uma fita de ação com locações no Pão de Açúcar e em Ipanema.

A indústria cinematográfica é popular. E vive um boom no momento. Detalhe: uma boa película indiana não dispensa longas cenas de dança.

Revisionismo histórico

Lula se encontrou com o líder da oposição, L.K. Advani, do Partido do Povo Indiano. Quando esteve no poder, essa legenda alterou livros didáticos para sustentar a controversa tese de que a mais antiga civilização era a hindu.

A mulher manda

Durante a manhã de 5 de junho, uma terça-feira, Lula se encontrou com Sonia Gandhi, a presidente do Partido do Congresso, a principal legenda da coalizão que sustenta o governo indiano. Ela indicou o técnico Manmohan Singh para primeiro-ministro.

Singh é uma mistura do ex-ministros da Fazenda Pedro Malan e Antonio Palocci Filho. Assim, Sonia, nascida na Itália, manteve o poder em suas mãos. Ela, que não tem parentesco com o Gandhi mais famoso do mundo, é a personalidade política mais forte da Índia.

Sete pecados sociais

Na visita ao memorial de Mahatma Gandhi, em 4 de junho, Lula disse que o líder indiano que pregava o princípio da não-violência como forma de revolução havia sido a sua "inspiração para a política". Lula se emocionou ao ouvir a tradução da inscrição numa placa de mármore branco do que Gandhi (1869-1948) considerava "sete pecados sociais".

Em 1925, Gandhi, que lutou pacificamente pela independência do império britânico, elencou os "sete pecados sociais": "política sem princípio, riqueza sem trabalho, prazer sem consciência, conhecimento sem caráter, comércio sem moralidade, ciência sem humanidade e devoção sem sacrifício".

Memorial Gandhi

Lula, jornalistas e integrantes da comitiva tiraram os sapatos para caminhar no tapete verde que levava ao Rajghat, um pequeno memorial de mármore negro no local em que o líder indiano foi cremado antes de suas cinzas serem espalhadas pelo rio Ganges. De chinelo branco, o presidente jogou pétalas no memorial. Na saída, foi presenteado com busto de bronze de Gandhi e três livros sobre sua vida e pensamento.

No início da tarde daquela segunda, Lula voltou a falar de Gandhi num discurso para empresários brasileiros e indianos: "Um homem muito franzino conseguiu libertar esse país de um dos maiores impérios que nós já conhecemos".

Lula Marques/Folha Imagem
O mausoléu Taj Mahal, na Índia
O mausoléu Taj Mahal, na Índia

O presidente, então, fez menção ao palácio presidencial que começou a ser construído pelos ingleses na década de 30 e que foi terminado pelos indianos após a independência de 1947. "Toda vez que vejo esses palácios construídos pelos ingleses, fico imaginando que eles nunca pensaram em sair daqui. Ninguém constrói um palácio daquele para sair do país."

Faz sentido o raciocínio, desenvolvido horas antes pelo chanceler Celso Amorim em conversa informal com jornalistas.

De tirar o fôlego

Há coisas demais para falar a respeito do Taj Mahal. Uma simples opinião: é provavelmente o mais belo monumento da arquitetura islâmica em todo o mundo. Entre o Cristo Redentor e o Taj Mahal, não tenha dúvida. Vote no Taj.

Kennedy Alencar, 39, é colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre os bastidores da política federal, aos domingos.

E-mail: kennedy.alencar@grupofolha.com.br

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