Pensata

Marcio Aith

07/05/2001

A obsessão pelo personagem e a miopia norte-americana

Na última semana, Bob Kerrey, ex-senador democrata pelo Estado de Nebraska, tornou-se o principal foco do noticiário norte-americano por um fato ocorrido 32 anos atrás.

Depois de três décadas, Kerrey reconheceu publicamente que, durante a Guerra do Vietnã, dirigiu um pelotão responsável pelo fuzilamento de um grupo desarmado de 14 velhos e crianças vietnamitas.

Para quem acompanhou o caso pela imprensa norte-americana, parecia não ser um crime de guerra, mas um drama particular de um homem público que, sendo "gente como a gente", viveu todos esses anos sendo torturado por um pesadelo horroroso.

Por mais louvável que seja a objetividade do jornalismo norte-americano, ele, às vezes, sofre derrapões imperdoáveis na busca pela história pessoal, pelo caso particular que chame a atenção do leitor e o faça entender o suposto contexto, o conjunto.

Esse episódio é especialmente simbólico.

Não se gastou muito tempo mostrando quem eram os mortos e o requinte de crueldade que envolveu seus assassinatos.

Tratou-se, na agenda da imprensa norte-americana, de descobrir como um homem bonzinho e amigo foi forte o suficiente para viver todos esses anos carregando um segredo.

O mote da cobertura foi "O DRAMA DE KERREY", e não "O ASSASSINATO DE VELHOS E CRIANÇAS". Não sei se é o caso é tão absurdo para vocês, mas, para mim, é chocante. A cobertura foi tão enviesada que várias revistas e TVs insinuaram que a confissão de Kerrey teria sido espontânea, esquecendo de mostrar que ela resultou de dois anos de pressões feitas por um jornalista autônomo chamado Gregory Vistica e pelo arrependimento de um dos subordinados de Kerrey.

Portanto, Kerrey não "abriu seu coração", mas foi obrigado a reconhecer as atrocidades que cometeu durante a Guerra.

É preciso registrar que o ex-senador teve que amputar pedaço de sua perna no Vietnã, mas o fato nada tem a ver com o massacre, ocorrido antes.

Passada uma semana do "DRAMA DE KERREY", a população norte-americana continua sem saber quem morreu no massacre.

O pouco de solidariedade que resta nos corações dos norte-americanos médios foi gasto para confortar o pobre ex-senador, atormentado por memórias horrorosas de uma guerra injusta. Pobrezinho.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca