Pensata

Marcio Aith

03/09/2001

Transparência e a carta de intenções do acordo com o FMI

Folha - O sr. tem criticado o PT por não ser claro a respeito do que pretende fazer, se chegar ao poder, em questões como inflação e controle orçamentário. Não é possível fazer crítica semelhante ao governo? Para citar um exemplo, não foi divulgada até hoje a carta de intenções do novo acordo com o FMI.

Pedro Malan - A carta está pronta. Está sendo traduzida para o português. Ela vai à diretoria executiva do fundo em 14 de setembro, se não me engano. Ainda não foi distribuída lá em inglês. Vamos divulgar simultaneamente. Eu devo ir à Câmara dos Deputados na semana seguinte. Quero ir com tudo pronto, o memorando de política econômica e o memorando técnico de entendimentos, para não dar margem à idéia de que há alguma coisa oculta.

Folha - O ministro Domingo Cavallo divulgou hoje (sexta-feira) a carta de intenções do acordo da Argentina, firmado bem depois do brasileiro. Alguma razão para a demora maior aqui?

Pedro Malan - Honestamente, não estávamos com pressa. Já foi tudo explicado. Dei uma longa entrevista à imprensa dois dias depois de anunciado o acordo. Passei seis horas no Congresso. Não há nada a esconder.

Entrevista do ministro Pedro Malan à jornalista Renata Lo Prete, publicada na edição de domingo da Folha



Um dos poucos benefícios trazidos pela crise econômica asiática de 1997 foi a introdução do hábito de divulgação rápida de cartas de intenções assinadas por países que pedem socorro ao FMI (Fundo Monetário Internacional).

Antes, governos com problemas em balanços de pagamento selavam acordos com o Fundo sem que suas populações jamais soubessem dos detalhes de ajustes que cidadãos comuns experimentariam na carne, mais cedo ou mais tarde.

Divulgava-se apenas o que convinha aos governos. Ninguém se opunha. A direção do FMI, julgando ser a instituição um clube formado por presidentes e ministros, e não por nações, nem se importava. A imprensa, perdida no "economês" ou incapaz de entender os interesses dentro de instituições multilaterais, nunca reclamou.

As coisas mudaram com o colapso da economia tailandesa, à medida que o FMI passou a ser bombardeado com críticas sobre falta de transparência e sobre o apoio financeiro a governos corruptos e/ou violentos. Sentindo-se obrigada a exibir transparência, a instituição passou a implementar pequenas reformas (superficiais ou reais, dependendo do ponto de vista) que, com os protestos antiglobalização, ganharam mais força recentemente.

Algumas mudanças se transformaram em regras formais: o FMI, por exemplo, passou a divulgar oficialmente o resultado de suas inspeções anuais nos países - os chamados relatórios do artigo 4.

É verdade que, para convencer os governos a aceitar tal "invasão", o Fundo os autorizou a revisar previamente o texto desses relatórios, permitindo o expurgo de trechos considerados embaraçosos.

Em 1999, por exemplo, um funcionário do governo FHC alterou o relatório anual do Fundo sobre a economia brasileira, atenuando trechos que indicavam preocupação generalizada dos diretores da instituição com aspectos negativos da economia.

Em dois trechos do relatório de 1999, o escritório do Brasil no Fundo adicionou a palavra "alguns" no começo da frase "Diretores executivos do FMI demonstraram preocupação com...".

Embora não tenham feito a mínima diferença, as mudanças foram a maneira encontrada por burocratas de plantão para suavizar o relatório, evitar repercussão negativa na imprensa e justificar os salários que recebem em Washington.

Outras mudanças verificadas no Fundo, como a divulgação rápida de cartas de intenções, tornaram-se praxe, mas ainda não viraram norma porque pertencem aos países. São assinadas por governos para indicar as tarefas que prometem cumprir em troca dos recursos que recebem do FMI. São elaboradas quando novos programas são concluídos ou quando um acordo vigente é alterado.

Hoje, os países as divulgam com base em interesses políticos, cronogramas eleitorais, senso democrático e por pressão da sociedade civil. Alguns governos, como o argentino, procuram tornar a carta de intenções disponível ao público dias depois do anúncio de acordos e antes mesmo de sua aprovação formal pela diretoria executiva do FMI. Outros governos, como o brasileiro, simplesmente enrolam.

Hoje (dia 3 de setembro) faz um mês que o FMI e o governo brasileiro anunciaram um novo programa de ajuste para o país e a carta de intenções ainda não foi divulgada. Segundo Malan, trata-se de um problema de tradução (ou será "expurgação"?) e não deveríamos nos preocupar porque ele, gentil e pacientemente, relatou seu conteúdo para nós, como se fôssemos um país de débeis mentais incapazes.

Segundo outra autoridade brasileira, que não quis identificar-se, trata-se de um costume: o governo tem a "praxe" de divulgar a carta apenas quando o "board" do Fundo a aprova. Seria algo como vestir cueca ou calcinha brancas em passagens de ano.

O FMI informou oficialmente já ter a carta brasileira em mãos e estaria apenas esperando um sinal verde de Malan para divulgá-la. Não acredito ter a equipe negociadora brasileira vendido a alma ao diabo em sua negociação com o Fundo. A relutância brasileira parece ter outro sentido. Compreendo-a mais como desprezo com a coisa pública e uma adaptação imoral de funções públicas aos caminhos tortuosos de vontades privadas.


Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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