Pensata

Marcio Aith

24/09/2001

O "Do Mal" e a tentação maniqueísta

Depois de assistir aos aviões batendo nas torres gêmeas do World Trade Center e ver imagens de Osama bin Laden na TV, Laura Balthazar, minha sobrinha de quase três anos, não teve dúvidas quanto à autoria e à gravidade dos atos terroristas em Nova York: "O do mal bateu o avião no seu prédio", disse ela, com ar grave, em recado gravado na minha secretária eletrônica.

Como moro fora do Brasil desde seu nascimento, Laura geralmente relaciona minha pessoa a locais e fatos nos EUA.

Para ela, frequento a Disney, trabalho no Pentágono e durmo na Casa Branca. Com base nessa lógica, Laura deve ter acreditado que eu estava dentro daquele prédio ou no Pentágono e preocupou-se (assim acredito) com meu bem-estar.

Dois dias depois do diagnóstico feito por Laura Balthazar, o presidente George W. Bush foi à TV explicar à população o que havia ocorrido: segundo ele, deu-se o início de "uma batalha monumental do bem contra o mal". Bush chamou os terroristas de "evil doers" (eu traduziria como fazedores de mal) e ameaçou: quem não está com os EUA está a favor do terrorismo.

A conclusão é inevitável: minha sobrinha Laura e o presidente Bush falam a mesma língua, embora Laura tenha matado a charada dois dias antes do presidente norte-americano. Para ambos, o mundo deve ser dividido em dois, o bem e o mal. Para eles, é a única maneira de torná-lo compreensível.

O problema é que Bush e os norte-americanos adultos não têm a idade de Laura (nem charmosos são). E aí a coisa complica.

Com base nessa visão de mundo, não há espaço para processar fatos que, se confrontados, poderiam abrir espaço para o conhecimento real do problema. Como entender que a carreira do "Do Mal" começou com dinheiro da CIA, a mesma agência administrada no passado pelo pai de Bush e financiada por contribuintes norte-americanos que morreram na tragédia? Outro fato difícil de entender na língua Bush-Laura é o ódio de setores islâmicos contra os EUA.

Segundo Bush, radicais islâmicos invejam a liberdade dos norte-americanos (democracia, TV, microondas) e por essa razão praticam atos terroristas. Só isso. Para os EUA, não há relação de causa e efeito entre atentados (não especificamente esse último) e o agravamento da crise no Oriente Médio ou entre o terrorismo e o apoio dos EUA a governos autoritários no Oriente Médio. Só existem o bem e o mal.

Antes que o sociólogo Luiz Eduardo Soares me acuse de relativizar a violência (ou até de apoiá-la), aqui vai uma ressalva: concordo plenamente com Laura Balthazar e com George W. Bush quanto à natureza horrorosa dos atentados. Foi uma carnificina de gente inocente: de mães esmagadas por concreto e aço, de pais que saíram para o trabalho e viram-se obrigados a optar entre morrer queimados e morrer jogando-se de uma altura absurda, de passageiros que pensavam serem vítimas de um "simples" sequestro.

Em artigo ao "No", Soares criticou a "relativização do terrorismo" de alguns brasileiros. Segundo ele, antiamericanos estão usando uma "estrutura argumentativa" para justificar a tragédia da seguinte maneira: afirmam posição contrária ao ato de terror e acrescentam cláusulas condicionantes e qualificadoras: "mas, porém, contudo, apesar, todavia, no entanto, por outro lado". Vejo razão em seus argumentos, concordo que os atos terroristas são injustificáveis mas temo que sua opinião nos coloque uma "camisa-de-força-de-general" e engesse nosso poder crítico. Não há justificativa para os atos terroristas de Nova York e de Washington, mas nem por isso ficamos cegos e idiotas.

Feita a ressalva, volto ao presidente Bush e à Laura Balthazar. Segundo o dicionário Aurélio, Maniqueísmo é a "Doutrina do persa Mani ou Manes (séc. III), sobre a qual se criou uma seita religiosa que teve adeptos na Índia, China, África, Itália e Espanha, e segundo a qual o Universo foi criado e é dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo".

Ontem, vi com satisfação a escritora norte-americana Susan Sontag dizer que Bush infantiliza a população com seu maniqueísmo (será que ela também se enquadra na teoria Soares da relativização da violência?). A imprensa norte-americana, com raras exceções, faz a mesma coisa. Dan Rather chorando no programa de David Letterman embrulhou meu estômago. Um dia depois, o veterano Walther Conkrite levantou meu espírito ao dizer, no mesmo programa, que os norte-americanos só irão entender o que ocorreu em Nova York e em Washington quando conhecerem o mundo.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca