Pensata

Marcio Aith

08/10/2001

Tropas federais ameaçam Arraial de Canudos; Bin Laden divulga sua voz para o mundo

Enquanto os EUA começavam ontem a "democratizar" a desgraça da guerra, distribuindo-a pelo mundo de forma homogênea, assisti, com atenção total, o pronunciamento de Osama Bin Laden e de seus parceiros mais próximos. Ladeado de barbudos e sentado à frente de uma parede de pedras, o terrorista sanguinário anunciou, num árabe suave e calmo, estar preparado para a guerra contra os infiéis.

Comparei, em minha mente, o discurso rústico de Laden ao pronunciamento "histórico" de George W. Bush (vocês já repararam que, para a imprensa, todos os discursos de Bush são históricos?), escrito por uma equipe de intelectuais e lido de um salão confortável na Casa Branca, na capital do império.

Tudo bem, sei que Bin Laden também é rico, herdeiro de uma família de empreiteiros sauditas. Mas é impossível deixar de notar o abismo visual que separa os dois cenários e a disparidade lógica entre os dois pronunciamentos. Essa diferença com os EUA já ficara registrada nas entrevistas feitas pelos malucos do Taleban nas últimas semanas. Eles coçavam suas barbas e olhavam para os microfones, como que tentando entender onde se colocavam as pilhas.

Minha memória foi transportada para 1897, ano em que, depois de uma luta sangrenta, tropas federais destruíram o Arraial de Canudos, sede de um movimento no norte da Bahia liderado pelo messiânico Antonio Conselheiro.

Depois de uma vida de pregações e peregrinações pelo sertão, Conselheiro reunira um grupo de seguidores fiéis e fundara o Arraial em 1893. Dirigira seus ataques à Igreja Católica e ao governo federal. Não pagava impostos e recusava instituições civilizadas como o casamento civil. A República reagiu. Chamou-o de insano, rebelde e desordeiro e enviou expedições para eliminá-lo. As duas primeiras falharam. As últimas duas tiveram sucesso. Como o termo dano colateral ainda não fora inventado, os vinte mil mortos foram simplesmente chamados de vinte mil mortos.

Nova ressalva: como na coluna anterior, e devido a alguns e-mails raivosos que continuo recebendo de pessoas consternadas com os ataques terroristas nos EUA, quero, aqui, dizer que, ao comparar Bin Laden e o Taleban a Antonio Conselheiro e escrever outras loucuras (como dizer que o presidente Bush quer nos atrair para sua própria burrice infantil), não estou fechando os olhos nem relativizando as mortes causadas no último dia 11 de setembro. Aquele foi um ato criminoso horroroso. Só que, como acho que não devemos fazer papel de idiotas tentando ser mais realistas que o rei (até alguns norte-americanos já abandonaram o patriotismo cego), achei que tais devaneios seriam apropriados.

Aliás, um recado para os que fugiram da TV por não suportar mais acompanhar a destruição causada pelos ataques terroristas em Nova York e ao Pentágono: liguem novamente a telinha! A guerra agora é eletrônica. Como na Guerra do Golfo, há uma década, tudo será divertido, colorido, preciso e acompanhado de música. Em vez de relatos sobre mortes, erros e carnificina, ouviremos, de militares equilibrados que falam inglês e fazem a barba, explicações sobre o instigante mundo dos mísseis Tomahawk, dos bombardeiros estratégicos B-1, dos bombardeiros de longo alcance B-2, dos bombardeiros pesados B-52 e todas as outras inovações tecnológicas que nos foram proporcionadas por entidades humanitárias como a General Dynamics e a McDonnel Douglas. AH, claro!! Antes que me esqueça: a Guerra do Golfo, há uma década, durou 43 dias; o assalto terrestre, apenas cem horas; os EUA mandaram 540 mil tropas e seus parceiros na operação "Tempestade no Deserto", outros 200 mil militares; foram despejadas 142 mil toneladas de bombas sobre o Iraque, cerca de 5% do total durante toda a Segunda Guerra Mundial; mais de 100 mil iraquianos foram mortos. Sim, 100 mil pessoas sem nome, sem endereço e sem nossa solidariedade. E saibam vocês: solidariedades a vítimas de massacres distintos não são, necessariamente, excludentes.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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