Pensata

Marcio Aith

22/10/2001

O Antraz e a lógica hipocondríaca

Confesso logo de saída minha condição de hipocondríaco. Escrevo essa coluna para discordar dos que apelam para a calma. Dos que defendem ser a epidemia do medo, e não a da bactéria antraz, o grande risco que corremos.

Até agora, não vi argumentos suficientemente fortes para dissolver meu temor e o de milhões de pessoas ao redor do mundo. Há, sim, o risco de contaminação por antraz. A epidemia do medo é só efeito colateral de um cálculo lógico dos riscos. Se especialistas e governos quiserem dissipar o medo, terão que ser mais competentes em seus esforços.

Para facilitar a exposição de meu raciocínio - que, como o de todo hipocondríaco, faz todo o sentido do mundo-, vou tentar contrapor meus temores aos argumentos sempre sóbrios do médico Drauzio Varella, publicados pela Folha no último sábado.

Varella procurou "deixar claro que o antraz das cartas anônimas não tem a menor probabilidade de causar epidemia". Vou tentar mostrar que, na cabeça do cidadão normal, não só interessa saber se uma doença vai se agravar até virar uma epidemia. Importa saber se há risco de ele e de sua família ficarem doentes, sendo uma epidemia ou não. E se, uma vez infectado, ele e sua família serão tratados rápida e apropriadamente.

É verdade que tenho mais motivos para ter medo do que os moradores do Brasil. Isso porque resido em Washington e as cartas que recebo são processadas pelo mesmo centro postal que abastece prédios públicos. Mas meus argumentos são válidos para todos porque sofrem influência de uma hipocondria universal. Vamos Lá:

Argumento 1 de Drauzio Varella- "Se não existe transmissão inter-humana e os esporos (da bactéria antraz) encontram dificuldade para penetrar a pele íntegra, o método de enviá-los pelo correio para jornalistas e políticos não tem fôlego para causar mais do que uns poucos casos de impacto jornalístico."

Ponderação (será que hipocondríaco pondera?) hipocondríaca A- Caro Varella, quem te disse que só os políticos e jornalistas receberam cartas com antraz? Você andou conversando com os terroristas? Pode ser que as cartas enviadas a figuras públicas tenham como única função anunciar o ataque, que teria sido (ou pode ser) mais ambicioso. Além disso, todas as cartas se misturam nos postos de correio. Não existe um escaninho para as cartas com antraz e outro para cartas sem antraz. Minha conta de telefone pode ter dormido em cima da carta com os esporos enviada ao senador Daschle. Além disso, lembre-se que o carteiro em Washington pegou antraz pulmonar. Ele era desconhecido do grande público e não tem o costume de abrir cartas alheias. Mesmo assim, algum esporo decidiu flutuar até o nariz ou a boca do pobre carteiro.

Ponderação hipocondríaca B - A diferença entre o cidadão comum e a celebridade é que o primeiro, quando infectado pela via respiratória, só vai receber antibióticos apropriados tarde demais, quando estiver perto da morte. Isso porque a doença, quando mostra seus sintomas no caso pulmonar, já não pode mais ser curada. Seria preciso diagnosticar logo cedo a contaminação. E é aí que mora o perigo: os testes de antraz só estão disponíveis para celebridades (e, desde ontem, para os carteiros). Resumindo: é a cura, e não o antraz, que tem fôlego para chegar aos jornalistas e aos políticos.

Argumento 2 de Drauzio Varella- "Para matar em massa, os terroristas precisariam empregar uma estratégia bem mais complexa: espalhar os esporos em aerossol sobre as grandes cidades, de avião...Em 1997, um estudo do escritório de avaliação tecnológica do Congresso americano calculou que, para provocar a morte de 130 mil a 3 milhões de pessoas na área de Washington, precisaria ser jogada uma bomba com cem quilos de esporos. Se lembrarmos que cada esporo mede um milésimo de milímetro, é possível fazer idéia do desafio tecnológico que seria construir e manipular uma bomba dessas."

Ponderação hipocondríaca- Querido Varella, o que você chama de morte em massa? Você mesmo lembra que, em 1979, num laboratório de microbiologia militar da cidade soviética de Sverdlovsk, houve vazamento de um aerossol de antraz, inodoro e invisível. Nos 43 dias que se seguiram, 64 moradores morreram. Pois bem. Sabe quantos esporos de antraz vazaram em Sverdlovsk? "Entre alguns miligramas e um grama", informou matéria definitiva sobre o episódio publicado pela revista Science (ver página 143 do livro "Germs", da jornalista Judith Miller, do New York Times). Pode não ser morte em massa, mas que dá medo, isso dá. E tem mais! Não é preciso uma bomba de antraz. Basta borrifar alguns quarteirões, durante uma noite calma.

Argumento 3 de Varella- "Uma característica que limita muito a capacidade do antraz em provocar epidemias é a de que o bacilo não se transmite de uma pessoa infectada para outra"

Ponderação hipocondríaca - É claro que a doença seria pior se fosse transmissível. Ninguém questiona isso. Só faltava essa agora.

Argumento 4 de Varella- "Pode ser que, no futuro, esse tipo de tecnologia seja simplificado a tal ponto que biobombas possam ser produzidas em fundo de quintal por um maníaco qualquer. No momento, entretanto, isso não passa de ficção científica."

Ponderação hipocondríaca- Tá certo, tá certo. Enquanto você explica isso para a família do carteiro doente, eu fico aqui, em casa, tentando comprar um vidro de Cipro pela internet e vendo o videotape daquele filme de ficção onde terroristas de orientação afegã sequestram quatro aviões simultaneamente e, numa missão suicida, derrubam as duas torres do World Trade Center e mais um "tágono" do Pentágono.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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