Pensata

Marcio Aith

29/10/2001

A nova missão dos militares japoneses

Volta e meia volto a escrever sobre o Japão e a Ásia. É cada vez mais difícil me desligar. Em março de 1999, quando saí de Tóquio, onde morei por 14 meses, achei que meu interesse pela região desapareceria com o tempo. Como fui transferido diretamente para os EUA, conclui que, para adaptar-me aos novos desafios, deveria deletar ou espremer parte do espaço mental ocupado anarquicamente por informações e memórias do Japão, da Indonésia, da Tailândia, da Coréia do Sul e da China. Não havia tempo para processar lembranças e, ao mesmo tempo, assumir as novas funções.

Por um momento, achei que tinha conseguido. Engano. Meu interesse e saudades por cada um desses países só aumentaram. Ontem, acompanhei com atenção aprovação da lei no Japão autorizando o envio de soldados ao Afeganistão.

Sei que a gravidade dos atentados de 11 de setembro tem o poder de ofuscar outros problemas, mas esse assunto é relevante, dependendo de quem o observa.

Ainda são frescas em toda a Ásia as memórias de invasões e atrocidades cometidas pelo exército imperial japonês na primeira metade do século 20.

Apenas dez dias atrás, o presidente sul-coreano, Kim Dae Jung, aprovou com ressalvas as "desculpas sinceras" apresentadas pelo primeiro-ministro Junichiro Koizumi pelos abusos horrendos cometidos durante a colonização da Península Coreana pelo Japão entre 1910 e 1945.

Parecia a repetição de um filme. Escrevi sobre o mesmo assunto quando o primeiro-ministro japonês era outro. As desculpas foram as mesmas. A resposta desconfiada, também.

O fato novo é a lei aprovada ontem. Ela mostra que os atentados nos EUA fizeram o tema caminhar, a agulha da vitrola andar para frente sobre o disco riscado. Só que nem todos querem ouvir a música.

Para quem não conhece os fatos, durante 35 anos os coreanos foram obrigados a falar japonês e adotar nomes japoneses para agradar os colonizadores. Na visão do "arianismo" imperial japonês, coreanos eram cidadãos de segunda classe. Eram assassinados e humilhados. No fim da colonização, quando os japoneses invadiram a China e o Sudeste asiático, milhares de mulheres coreanas foram enviadas para a linha de frente para "satisfazer sexualmente" os soldados imperiais do Japão. Estupro oficial, só reconhecido oficialmente décadas mais tarde com a revelação de um militar japonês arrependido. Até então, o governo japonês dizia que essas mulheres eram prostitutas e seus descendentes queriam indenizações fraudulentas de Tóquio.

O caso coreano pode parecer o pior pela duração, mas não é o único. Chineses, filipinos, indonésios e tailandeses têm traumas semelhantes.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi obrigado pelos aliados a adotar uma constituição "pacifista". Comprometeram-se a desistir de forças militares ofensivas em nome da segurança asiática.

Com a lei aprovada ontem, algo mudou no cenário da região. É verdade que soldados japoneses não poderão participar de combates. Poderão apenas transportar suprimentos, conduzir missões de resgate e enviar equipes médicas para apoiar os soldados americanos. Além disso, unidades japonesas só devem atuar em áreas sem conflitos. Pode parecer inofensivo para nós, ocidentais. Mas, como o mundo hoje parece ser um jogo de queda de dominós, um toque aqui pode provocar um efeito noutro lugar. Para os países asiáticos que se opuseram a essa lei, as feridas ainda estão abertas.

Reconheço que não há vontade nem condições de os militares japoneses surtarem novamente (curiosamente, um forte boato do dia 11 de setembro informava que os atentados nos EUA eram vinganças de grupos japoneses de orientação kamikaze às bombas de Hiroshima e Nagazaki).

Se os militares japoneses sucumbirem ao saudosismo, a China os ameaçaria, sem pestanejar, dando início a uma nova bagunça geopolítica. Não é isso o que queremos. Queremos tranquilidade. Às vezes, tenho saudades, muitas saudades, daquele apartamento de 35 metros quadrados em Tóquio. Quero que o prédio (que resiste a terremotos) continue de pé.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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