Pensata

Marcio Aith

24/12/2001

Assim viviam os norte-americanos antes de 11 de setembro

Em 1999, quando contei o caso a meus amigos argentinos Maria e Federico, eles custaram a acreditar. "Como é? Um processo judicial por causa de um par de tênis sujos?". Sim, era isso mesmo. Duas de minhas vizinhas em Washington chegaram a brigar na Justiça por causa de um par velho de tênis esportivos, desses de caminhar. Uma delas insistia em deixá-los do lado de fora do apartamento, no corredor, sempre que voltava dos exercícios físicos. A outra, que era obrigada a passar por eles quando ia e voltava do elevador, dizia-se enojada com a visão compulsória. Considerava tal hábito nojento e contrário às regras de condomínio. Nunca se falaram nos três anos em que a briga durou. Sempre se enfrentaram por meio de terceiros. Começaram com cartas enviadas ao escritório que administra o condomínio. A dona do par invocava o direito de propriedade e a falta de proibição específica. A outra dizia sofrer danos morais toda vez que caminhava para seu apartamento. Dizia que o prédio fora desvalorizado e transformado numa favela pelo hábito da vizinha. Antes de a briga começar, a dona dos tênis os colocava no corredor duas vezes por semana. Com o conflito, decidiu transformá-los em símbolos de sua resistência. Deixou-os permanentemente no corredor.

Surpreso, Federico achou que a briga não fazia sentido. "Nós latinos, já teríamos resolvido o problema em dois tempos. Sairíamos na porrada ou alguém daria um sumiço nos tênis." Enquanto conversávamos, Maria e Federico, incrédulos, abriram bem pouquinho a porta de meu apartamento e fitaram os tênis pela fresta. Nossas vidas prosseguiram. Meses depois, numa manhã como qualquer outra, encontrei três policiais de pé no corredor quando saía para trabalhar. Conversavam com a mulher que se queixara na Justiça. Um deles escrevia coisas numa prancheta. Perguntavam se ela tinha alguma informação para ajudá-los na investigação sobre a "remoção suspeita" do par de tênis. Ela perguntou se estava sendo acusada de algo. Disseram que não. A quinze metros, a dona observava tudo, quieta e emburrada. À noite, fui informado pelo porteiro (também estrangeiro) que, sem esconder sua satisfação, contou que algum engraçadinho pegara os tênis da mulher e colocara cada pé na porta de outros dois moradores. Só de sacanagem.

Não tive nada a ver com isso. Tenho certeza que Federico e Maria também não. Temos muito medo do sistema legal e judicial norte-americano. É bem provável que existisse uma lei no Texas punindo com morte "a remoção de tênis alheios". Seria difícil descobrir quem foi. O prédio tem quase dois mil moradores e a briga entre as duas vizinhas ficara famosa, assim como os tênis. Eram muitos os suspeitos. Depois do episódio policial, os tênis voltaram para o corredor. As duas retomaram a briga, que prosseguiu até....11 de setembro. Contam por aí que os atentados puseram fim ao conflito. O porteiro acha que foi um ato de solidariedade aos mortos nos atentados e um reconhecimento mútuo de que há brigas mais importantes para serem travadas na vida. Ninguém sabe o que ocorreu de verdade. O fato é que a queixosa retirou o processo da Justiça e a outra retirou os tênis do corredor.

Federico, cineasta, e Maria, jornalista, voltaram para a Argentina. O mundo nunca mais foi o mesmo. É isso.

Observação aos leitores - Essa é minha última coluna antes das férias. Volto no dia 26 de janeiro. Sejam felizes.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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