Pensata

Marcio Aith

15/04/2002

Crise na Venezuela testa os limites do golpe e do continuismo

Cheguei a Caracas na tarde de sexta-feira. Vieram no mesmo vôo, vindo de Miami, dezenas de venezuelanos contrários ao presidente Hugo Chávez, o militar que, golpista em 92, fora eleito democraticamente em 99 vencendo as grandes estruturas partidárias. Alguns passageiros eram ricos, símbolos daqueles que Chávez chama de "porcos-esganiçado". Mas a maioria era de classe média, médicos e professores que haviam largado suas profissões para lavar pratos em Miami. Estavam descontentes com a crise econômica, com a hostilidade de Chávez contra qualquer pessoa que tenha carro, com a interferência de militares na vida do país e com o distanciamento da economia e da cultura norte-americanas.

Vi Chávez voltar de helicóptero na madrugada de domingo, nos braços do povo humilde. Nas conversas informais com soldados, mandou chumbo nas "oligarquias", um grupo que, para os 80% de pobres do país, inclui os assalariados e a classe média, perdida numa guerra entre ricos e pobres.

Depois de dois dias na Venezuela, percebi que a situação política no país é mais complicada do que muitos (eu inclusive) achavam.

Não há dúvidas de que houve um golpe de Estado no país na última quinta-feira, por mais que alguns tentem justificar sua frustrada deposição com o simples fato (verdadeiro) de Chávez ter características de um fanfarrão.

A Constituição foi violada e o presidente eleito foi destituído e substituído por um empresário cheio de interesses petroquímicos.

Também não há dúvidas de que há, na Venezuela, uma elite endinheirada, que enrqueceu à custa da expropriação injusta dos lucros do petróleo.

Mas a situação venezuelana é mais confusa. Primeiro, não há só ricos e pobres, há também uma enorme classe média.

Depois, Chávez costurou a nova Carta do jeito que quis. Em 1999, a assembléia constituinte foi eleita num momento de pico de sua popularidade e de desgraça dos outros partidos. Sim, ela foi referendada, mas numa votação do tipo tudo ou nada, que não admite a absorção das nuances e diferenças dentro da sociedade venezuelana.

O texto da atual carta previu as eleições gerais que reelegeram Chávez em 2000, eliminou o Senado, deu mais poderes aos militares e a capacidade de o presidente dissolver a Assembléia Nacional em certos casos. Também aumentou o mandato presidencial para seis anos e instituiu a reeleição. Em tese, Chávez poderá ficar no poder até 2012, num total de 14 anos no poder.

Se o povo venezuelano quiser mudar a Constituição de forma legítima, terá de transpor diversos obstáculos propositalmente deixados no caminho por Chávez. Não há canal de expressão para uma minoria considerável da sociedade (quase 20% do país)

Imaginem um presidente do qual vocês não gostem e que faz questão de marginalizar e hostilizar as minorias. Imaginem que, em vez de ficar no poder por apenas um mandato de quatro ou cinco anos, ele possa ficar na presidência por 14 anos ou até mais, se mudar novamente a Constituição. Algo como Fernando Henrique Cardoso ao quadrado em termos de continuismo. Pensem que, como ele tem o apoio da maioria _ e ele de fato tem o apoio da maioria_ , poderá perpetuar-se no poder até morrer.

O que quero dizer com tudo isso é que Chávez optou por marginalizar mais do que os privilegiados, mas as classes urbanas assalariadas. Achou que um mandato legítimo lhe dá salvo-conduto para perseguir as minorias. O curioso é que o número de pobres e de miseráveis aumentou durante seu governo, não só por sua culpa, mas também pelos preços baixos do petróleo.

Um observador externo poderia dizer que, com o empobrecimento do país, Chávez perderia seu apoio. Mas ele é muito mais inteligente do que fanfarrão. Ele sabe usar a crise econômica para angariar ainda mais apoio à sua " revolução pacífica" e a sua guerra contra as oligarquias.

O sucesso do governo Chávez depende agora de sua capacidade de ampliar sua base de apoio e reduzir a antagonização da sociedade. Sob risco de sofrer outro golpe ou de expulsar do país todos que têm algum tipo de diploma ou um carro. Chávez começou a reorientar seu discurso ontem, com um tom mais conciliador. É preciso saber se é para valer.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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