Pensata

Marcio Aith

15/07/2002

Bush: de maniqueísta a complexo em apenas dez meses

Logo após os atentados de 11 de setembro, George Walker Bush pregou pelo mundo sua teoria segundo a qual só há dois tipos de seres humanos e de países: os bonzinhos e os malfeitores ("evildoers", segundo ele).

Na semana passada, menos de um ano depois, quando o globo terrestre ainda tentava fazer um esforço danado para aplicar essa teoria a uma realidade mais complexa, o mesmo Bush saiu-se com a seguinte pérola ao defender as operações suspeitas da Harken Energy, empresa texana da qual era diretor até 1990: "Existe uma grande distinção entre fraude e uma simples divergência de opinião. No mundo corporativo, nem tudo é preto e branco com relação a procedimentos contábeis. Houve (no caso da Harken) uma divergência honesta com relação a procedimentos contábeis. A SEC olhou para o problema e pediu à Harken reapresentar seu balanço. Não houve tentativa de esconder nada."

Salta aos olhos não só a contradição entre as duas noções como também a tranquilidade com a qual o presidente desligou-se de seu simplismo para tentar salvar sua popularidade.

Não pretendo equiparar terrorismo ao mundo da contabilidade. Pelo contrário. As duas coisas são diferentes. Só que no sentido inverso ao empregado por Bush.

Se há mundos onde a fronteira entre o branco e o preto é nítida, eles são os da contabilidade e da ética empresarial. Nele, está claro e óbvio que uma companhia não deve forjar uma venda para inflar seu balanço _ como o fez a Harken Energy. Nele, é óbvio que um executivo não pode usar informação privilegiada para vender suas ações antes que seus preços desabem _ como parece ter feito Bush ao vender suas ações por US 848 mil 16 dias depois de descobrir que o preço delas despencaria.

O branco e o preto são os pilares da ética empresarial e do mundo contábil. As regras devem, por princípio, ser claras. Elas existem para isso.

Já o mundo do terrorismo é certamente mais complexo. Varia conforme quem o define, onde ele ocorre, por quem ele é praticado e contra quem ele é praticado. O que é terrorismo para uns, para outros pode ser autopreservação da raça ou do grupo. Ato terrorista pode também ser visto como autodefesa.

Não estou dizendo que Osama bin Laden deva ser julgado favoravelmente pela opinião pública mundial devido à complexidade que cerca o terrorismo. Bin Laden é um maluco assassino. O que estou querendo dividir com os leitores é que o terrorismo precede Bin Laden e, diferentemente do mundo da contabilidade, não pressupõe lógica nem contém regras.

Em 30 de setembro de 2001, o jornalista da Folha João Batista Natali escreveu um texto esclarecedor sobre o assunto. Transcrevo a seguir alguns trechos:

"A palavra terror entrou na política em 1792, quando, com a Revolução Francesa, em dois anos foram sumariamente guilhotinados, em Paris, 1.300 supostos adversários do novo regime. É ainda consensual que o terrorismo nasceu entre os anarquistas russos, que em 1881 mataram o czar Alexandre 2º. Os EUA definem hoje terrorismo como "violência premeditada, motivada politicamente contra civis e cometida por grupos subnacionais ou agentes clandestinos, geralmente com o objetivo de influenciar uma audiência". Mas é uma definição restrita. A "Enciclopédia Britânica", que não precisa se pautar por razão de Estado, acrescenta que terroristas podem ser até os próprios governos. A ONU não chegou a uma definição de terrorismo, tema bastante complexo...O fascismo italiano e as tropas de ocupação nazistas na França qualificavam de terroristas os movimentos armados de resistência. Na África do Sul, durante o apartheid, a mesma palavra era reservada a Nelson Mandela, eleito presidente em 1994 e depois Nobel da Paz...Só com terrorismo não se ganha uma guerra, mas alguns grupos, no combate militar mais amplo, conseguiram chegar ao poder. Aconteceu com a independência da Argélia, em 1962, e com os vietnamitas, ao derrotarem os franceses (1954) e o regime pró-americano de Saigon (1975)...Há uma profusão de atentados indiretamente atribuídos, durante à Guerra Fria, às superpotências (EUA e ex-URSS)."

É arriscado para o mundo ver um presidente norte-americano envolver-se numa enrascada contábil como essa. Resta a nós, globalizados compulsoriamente, a satisfação de constatar que Bush sofisticou-se nesses dez meses. Ele já sabe que há mais cores além do preto e do branco. Falta aplicar essa descoberta em favor da humanidade.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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