Pensata

Marcio Aith

16/09/2002

País de vigilantes

Três homens foram presos na sexta-feira pela polícia da Flórida, suspeitos de terrorismo. Os dois carros em que viajavam foram interceptados numa estrada que atravessa o Sul do Estado _ a "Alligator Alley". As prisões aconteceram depois que uma mulher relatou tê-los ouvido planejar um ataque terrorista. Segundo a mulher, que os encontrara horas antes num restaurante de uma pequena cidade, os três homens falaram sobre um atentado que iria ocorrer na Flórida e que, se os EUA lamentaram 11 de setembro, lamentariam ainda mais o dia 13 de setembro. Descendentes de árabes, os homens vestiam "roupas de muçulmanos", segundo a mulher. Mesmo assim, segundo ela conversavam em inglês.

A polícia fechou a estrada depois de interceptá-los. Emissoras transmitiram ao vivo imagens captadas por helicópteros. Os EUA pararam para ver robôs e especialistas do esquadrão antibombas, vestidos de astronautas, vasculhando os carros. Um tenente, de nome John Bagnardi, contou que cães haviam farejado algo e que poderia haver explosivos dentro dos carros. Restrições aéreas foram impostas ao redor do local. Bagnardi disse ainda terem sido encontrado livros "em islâmico" (sic) dentro dos carros.

Enquanto isso, um Aspone da recém-criada secretaria de segurança interna, responsável pelo combate ao terror dentro dos EUA, concedeu entrevista coletiva para elogiar a atitude da mulher, que seria uma "true american", uma patriota. Só com atitudes como essa, disse ele, o terrorismo poderia ser destruído.

Os três homens foram interrogados pela polícia durante 17 horas. Descobriu-se que eram estudantes de medicina a caminho de um curso no "Larkin Community Hospital", em Miami. Suas vidas foram investigadas. Dois deles nasceram nos EUA. Outro, de origem jordaniana, é naturalizado americano. Não havia bombas dentro dos carros, os cães se enganaram. Os livros "em islâmico" eram manuais de medicina escritos em árabe. Os três negaram terem feito quaisquer referências a 11 de setembro e disseram que a denunciante mentira. A mulher nega ser racista e insiste que os ouviu falar sobre atentados, sentada numa mesa próxima da deles. No entanto, admitiu, depois, que seu filho, também presente no restaurante no momento da conversa, discordara da avaliação da mãe.

O FBI desculpou-se e liberou os três estudantes. Mesmo assim, a administração do hospital que os abrigaria negou-se a recebê-los, alegando ter recebido centenas de cartas e telefonemas ameaçadores depois do episódio. A tranquilidade dos pacientes seria perturbada.

O episódio revela perfeitamente o clima de caça às bruxas instalado dentro dos EUA sob o comando do secretário de Justiça, John Ashcroft. Conhecido por cobrir estátuas de mulheres nuas com panos, o secretário estimula publicamente a delação e, embora negue, fomenta o racismo.

Talvez seja injusto esperar dos americanos, depois de 11 de setembro, uma discussão saudável sobre valores, liberdades civis e exemplos históricos (e destinos) de sociedades vigilantes.

No entanto, ninguém questiona a simples eficácia de tal política de delação no combate real ao terrorismo. Ninguém nos EUA cobra inteligência da inteligência. Aliás, Ashcroft decidiu privatizar a inteligência americana. Começou a recrutar milhões de funcionários de empresas de serviços domiciliares, como carteiros, reparadores de TV a cabo e entregadores de pizza, para delatar ao FBI quaisquer atividades suspeitas. Como disse o ex-presidente Jimmy Carter recentemente, várias coisas preocupantes estão acontecendo dentro dos EUA atualmente. Essa é só uma delas.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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