Pensata

Marcio Aith

23/09/2002

O mundo não sabe como reagir à doutrina Bush

Na última sexta-feira, o presidente dos EUA, George W. Bush, divulgou um documento sobre política externa por meio do qual consolida sua doutrina de ataques preventivos e formaliza a supremacia militar e econômica americana.

O documento _"A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos"_ afirma que os EUA não pretendem permitir que sua liderança seja desafiada e agirão para perpetuar a hegemonia americana.

O documento tem dimensão histórica. Considerando a importância simbólica de toda ação governamental desse quilate, sua divulgação fica marcada como o momento em que os EUA, tendo vencido a Guerra-Fria, manifesta sua estratégia para manter-se líder no mundo_ à força, se necessário.

Desde sexta-feira, tento, inutilmente, caçar a reação de países como China, Rússia e Brasil a esse documento. Nenhum governo ousa comentá-lo publicamente. Diplomatas estrangeiros em Washington fazem críticas reservadas ao texto, mas ninguém as expõem.

O ministro Celso Lafer (Relações Exteriores), que estava na capital americana na semana passada, fez um esforço enorme para fugir do assunto, tendo mandado um assessor dizer que não falaria porque não lera as 33 páginas que compõem a estratégia americana.

Acredito haver dois motivos para tanta cautela. O primeiro é tático. Nenhum país obteria ganhos estratégicos criticando Bush ou contestando, de forma infantil, a incontestável hegemonia dos EUA.

Mas a inação também decorre do fato de que ninguém sabe como reagir. Existem dúvidas, entre os países industrializados e emergentes, sobre como situar-se num mundo unipolar onde o líder faz questão de mostrar quem manda. Na dúvida, decide-se nada falar.

O México, único país que se apressou em acoplar sua própria política externa à nova realidade divulgada pelos EUA, hoje arrepende-se. Eu estava no México, em junho passado, quando, num jantar oferecido a diplomatas estrangeiros, o chanceler Jorge Castañeda divulgou que os pilares da nova política externa mexicana passariam-se a basear-se no reconhecimento dos EUA como potência hegemônica.

Apelidada por Castañeda de "bilateralismo multilateral", a nova política externa mexicana propõe alianças estratégicas com todos os países, mas reconhece o fato indiscutível de que o México deve vincular-se primordialmente aos EUA, por "razões de história, de geografia e interesses concretos".

Desde junho, os mexicanos vinham oferecendo aos EUA colaboração generosa e gratuita em todos os campos. Há duas semanas, depois de perceber que nada obteriam em troca _ ao contrário, tiveram seus interesses contrariados em vários assuntos_, começaram a colocar bodes na relação do país com os americanos.

Enquanto os EUA homenageavam as vítimas de 11 de setembro, o presidente Vicente Fox decidiu retirar o México do TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), aquele acordo militar concebido no início da Guerra Fria como um mecanismo de ação coletiva de autodefesa no hemisfério.

O tratado, invocado pelo Brasil depois dos atentados, prevê que um ataque contra um dos países signatários seja considerado um ataque a todos os demais.

É verdade que o México já denunciara o TIAR antes de 11 de setembro por considerá-lo obsoleto. Portanto, a oposição dos mexicanos a ele não é nova. No entanto, Fox mudara de idéia depois dos atentados, reconhecendo que surgira uma nova função para o acordo. Agora, acabrunhado com os EUA, Fox mudou de idéia novamente.

Segundo um diplomata mexicano com quem conversei, Fox descobriu que os americanos só dão valor e oferecem ajuda para quem lhes cria dificuldades, obstáculos e problemas. Já que os EUA declararam sua hegemonia no mundo, disse ele, que paguem o preço.

John Ikenberry, professor da Universidade de Georgetown, publicou na revista "Foreign Affairs" um ótimo artigo sobre a nova doutrina americana que resvala nesse ponto.

Nele, sustenta que os parceiros dos EUA começarão a exigir compensações para colaborar com a Casa Branca em tarefas como participar da reconstrução de países destruídos depois de conflitos e fornecer informações de inteligência.

Segundo Ikenberry, outros governos raciocinarão que, se os EUA querem exercer sua hegemonia sem consultar a comunidade internacional, cabe à Casa Branca arcar com o preço dessa hegemonia.

Por exemplo: para concordar com a invasão do Iraque, a Rússia exigiria exclusividade na exploração de petróleo naquele país. Para prender terroristas, o Paquistão exigiria ainda mais ajuda do FMI (Fundo Monetário Internacional).

Nesse mundo onde os EUA mandam e a comunidade internacional passa à condição de coadjuvante, ninguém colaboraria, todos cobrariam um preço.

É preciso descobrir o que (e "se") cabe ao Brasil dizer nesse contexto. Por enquanto, como quase todo o resto do mundo, ficamos quietos, esperando que alguém atire a primeira pedra.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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