Pensata

Marcio Aith

07/10/2002

Os EUA aprenderam a conviver com a esquerda no Ocidente

As eleições de 2002 ficarão marcadas por dois fenômenos surpreendentes. O primeiro deles é a derrota de forças tradicionais da política brasileiras como Newton Cardoso, Orestes Quércia, Paulo Maluf, Gilberto Mestrinho e Leonel Brizola. Sem qualquer juízo de valor, é evidente que os os eleitores rejeitaram a mensagem conhecida desses personagens e optaram pelo novo. Alguns cientistas políticos anunciarão um "processo salutar de renovação" no processo político brasileiro. Acho tal análise prematura, não me surpreenderia se alguns deles voltarem daqui a quatro anos. Mas é possível detectar o surgimento de uma nova classe de líderes e de partidos políticos no país.

A outra mudança é o comportamento até agora exemplar do governo americano com relação às eleições no Brasil. A neutralidade da Casa Branca tem sido tão explícita (se é que "neutralidade explícita" existe) que os americanos correm o risco de passarem por "petistas" quando comparam Lula a Lincoln ou dizem que o candidato do PT simboliza o sonho americano.

O curioso é que o governo americano conseguiu manter-se distante da disputa eleitoral brasileira num momento em que seu presidente, George W. Bush, faz renascer um clima de guerra fria no mundo. Seria natural que Bush comparasse Lula a Chávez e enviasse ao Brasil mensagens ameaçadores como "se Lula ganhar, fecharemos as portas do FMI para vocês".

Da mesma forma que não excluo a possibilidade de Maluf e Newton Cardoso se elegerem no futuro, também não descarto uma deterioração grave na relação bilateral caso Lula seja eleito. Ao manter-se neutra na campanha, a Casa Branca não quer dizer que aceitará, sem gritar, todos os aspectos de esquerda de um eventual governo de Lula. Os EUA sabem como se defender de que lhes ameaça econômica e politicamente. Além disso, para quem guarda a chave do cofre do FMI, não é preciso criticar Lula publicamente. Basta limitar o acesso do Brasil ao acordo de US$ 30,4 bilhões com o Fundo. O país quebra no dia seguinte.

No entanto, considerando que os EUA nunca conviveram pacificamente com candidatos e governos de esquerda na região, sejam eles democráticos ou não, trata-se de um avanço incrível.

A postura democrática dos EUA frente às eleições brasileiras resulta de um conflito interno, não é pacífica dentro do governo americano. Decorre de alertas e conselhos de autoridades como John Maisto, assessor da Casa Branca para a América Latina, e Donna Hrinak, embaixadora dos EUA no Brasil.

Curiosamente, ambos foram embaixadores dos EUA na Venezuela de Hugo Chávez, da mesma maneira que Otto Reich, o subsecretário de Estado para a região que, embora negue, insiste em demonizar Lula em conversas privadas.

Eu pude testemunhar o avanço dos EUA no tratamento dado às eleições no Brasil. Começou no ano passado, antes mesmo de Hrinak ser nomeada embaixadora dos EUA em Brasília. Numa entrevista à Folha no dia cinco de setembro de 2001, Curt Struble, vice-subsecretário de Estado dos EUA para o Hemisfério Ocidental, deu a primeira demonstração de que os EUA não temem uma eventual vitória petista.

"Os EUA se preocupam em assegurar o compromisso democrático dos governos e de candidatos latino-americanos. No caso de Lula, embora ele defenda posições das quais discordamos, não há dúvidas quanto ao fato de ele ser um democrata. A democracia no Brasil está madura. Sabemos que o presidente que for eleito assumirá e ficará no poder durante o período de seu mandato."

Em junho passado, a embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak, surpreendeu ao dizer que Lula simboliza o sonho norte-americano de ascensão social. "Conheci o Lula nos anos 80. Ele teve de superar muita coisa para chegar onde chegou. O sonho dos Estados Unidos é um pouco o sonho brasileiro."

Os EUA parecem ter aprendido a conviver com um candidato de esquerda no Hemisfério Ocidental. Resta saber se saberão lidar com um presidente de esquerda no Brasil.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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